São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Cloaca do penta

EUGÊNIO BUCCI

CONFESSO que bebo Coca-Cola. Ao longo da minha existência, devo ter tido as entranhas lavadas por uma Baía da Guanabara de Coca-Cola. Um oceano de Coca-Cola. Um século de imperialismo de Coca-Cola. Eu obedeço as placas que ordenam "Beba Coca-Cola". Eu bebo Coca-Cola. E é assim, dessa condição de um animal que bebe Coca-Cola e que pela Coca-Cola é bebido que eu posso afirmar: eu tenho nojo dessa campanha da Coca-Cola em prol do Brasil na Copa do Mundo. Tenho nojo sobretudo desse comercial em que Pelé aparece suado, pingando, com o uniforme do Santos e, claro, bebendo Coca-Cola. O Pelé bebe Coca-Cola.
O leitor, telespectador que é, há de ter visto a peça em questão. A câmera, no começo, mostra dois pés calçados em chuteiras. O esquerdo pisa o chão. O direito descansa sobre uma bola de capotão. A câmera vai subindo vagarosa, num movimento de ascensão. Entra uma voz declamando uma paráfrase pagã do "Pai Nosso". O texto da publicidade, cujo autor eu desconheço, faz um trocadilho de pai com pés, algo como "pés nossos que estais no chão", sei lá, e assim segue a propaganda que, mesmo não sendo samba, evolui em feitio de oração. Surge o rosto do rei, suor no rosto, Coca nos lábios. Perfeição. A tampinha de Coca-Cola entra em cena, então, e, apenas para não deixar a rima em "ão", tem o formato de um coração. E lá vem o slogan, que tem algo a ver com paixão. É isso aí: a publicidade se apropria das cores da bandeira nacional, do Rei do futebol e do "Pai Nosso" para construir o valor da marca que, não por acaso, nada tem de nacional, nem de esportiva e muito menos de católica. É isso aí: eu sinto nojo.
A publicidade é uma superindústria sem cerimônia que fabrica sentidos e significações para a vida vazia dos sujeitos do público. Para nós. Cada um de nós se completa nos signos que a superindústria da publicidade nos oferece. Antes, essas significações eram proporcionadas pela cultura; hoje, são confeccionadas na superindústria. Quem sou eu? Antes, eu seria um brasileiro, um fã do Pelé, um cristão que gostava de rezar o "Pai Nosso". Hoje, eu sou um bebedor de Coca-Cola, como um ralo, como um bueiro, como o Pelé. Por isso a marca da Coca-Cola tem tanto valor, porque ela se infiltra nos nossos mecanismos identitários, com o perdão da expressão, e com o perdão da rima em "ão", e aí, infiltrada, ela nos diz quem somos. Assim como a Nike, essa aí que fabrica marca, e não tênis, que é uma superindústria do imaginário, e não uma empresa do ramo de calçados. É essa lógica do imaginário superindustrial que explica parte do gozo experimentado pelo sujeito diante da TV: ele vê ali o sentido (fabricado) do que não tem sentido, o sentido de si mesmo. Ele se pacifica. O consumo das mercadorias começa, portanto, pelo consumo das imagens (das quais o sujeito precisa para se explicar a si mesmo). E o consumo das imagens, como se fosse trabalho, como se ver televisão fosse uma forma de trabalho, ainda que não remunerado, é o que completa a fabricação do valor das marcas.
Voltemos à Coca-Cola, coisa gasosa que eu juro que bebo. Voltemos no tempo, também. Voltemos a 1957, ano em que Décio Pignatari, um pioneiro da crítica de TV no Brasil, fez o seu poema "Cloaca", superconcretamente subversivo: "beba coca cola/ babe cola/ beba coca/ babe cola caco/ caco/ cola/ cloaca". Se adjetivos aí fossem admitidos, poderíamos dizer: supercloaca superindustrial. Voltemos, enfim, ao juízo que nunca tivemos. O imperativo "Beba Coca-Cola" entra assim nos desvãos da fé religiosa, do patriotismo, da devoção a um rei, nem que seja um rei do futebol. E cria seu valor. Como se fôssemos todos idiotas, todos inimputáveis, todos obedientes bebedores de Coca-Cola. É assim e, no entanto, funciona.



Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo
Próximo Texto: Filmes
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.