São Paulo, domingo, 9 de agosto de 1998

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CRÍTICA
Xuxa, Globo, Brasil S.A.

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Marluce Dias da Silva, a superintendente-executiva da Globo, a mulher que apita e manda hoje no império televisivo dos Marinho, gostou demais da cobertura dada pela emissora ao nascimento de Sasha. Tanto é assim que na última terça-feira fez chegar aos profissionais da CGJ (Central Globo de Jornalismo) um texto de sua autoria, destinado apenas para consumo interno.
A carta, cujo teor chegou ao conhecimento de uma colega da Folha, a repórter Anna Lee, é uma espécie de balanço do jornalismo global no último semestre. O conteúdo seria o seguinte: "Eu já me preparava para escrever uma mensagem compartilhando com vocês minha alegria por tão bons resultados (referia-se à audiência obtida durante a Copa) quando recebi uma carta parabenizando-os por mais uma cobertura realizada. Foi uma carta da Xuxa, agradecendo pelo respeito e carinho com que fizemos a cobertura do nascimento da Sasha. Num trecho da carta que ela pediu para retransmitir a todos os funcionários da CGJ, ela diz: "A TV Globo me escolheu para fazer parte de seu elenco, mas eu também fiz minha escolha permanecendo nessa emissora que, apesar de seu tamanho, apesar de seus compromissos, usou seus recursos técnicos e de profissionais para fazer um trabalho tão carinhoso. Eu tenho muito orgulho de pertencer a esta casa'. Meus amigos (continuaria Marluce), a carta me fez perceber que temos mais motivos para celebração. Além de tudo o que citei acima, vocês têm feito mais. Têm conseguido fazer jornalismo sério e competente sem perder a sensibilidade e a dimensão humana. Vocês têm feito com que todos nós tenhamos cada vez mais orgulho de pertencer a essa casa. Parabéns e obrigado. Marluce."
Volto ao assunto Xuxa porque essa carta parece muito representativa da orientação que a cúpula da Globo resolveu dar a seu jornalismo, particularmente ao "Jornal Nacional". A carta seria até muito simpática se não tivéssemos conhecimento da demência que foi a cobertura do nascimento de Sasha. Há, aliás, uma completa sintonia entre a atitude de Xuxa, que empresariou a sua gravidez e a sua filha o máximo que pôde, e esse telejornalismo que hierarquiza o noticiário seguindo critérios estritamente empresariais.
Atrofia os assuntos de relevância pública, espetacularização da vida íntima, ênfase no showbiz e sentimentalismo exacerbado (isso que Marluce chama de dimensão humana) são recursos estratégicos legítimos e desejáveis quando a notícia se torna exclusivamente refém das oscilações da audiência. Isso dá, de fato, "ótimos resultados"
A era Marluce parece ter isso de sinistro: é, como Xuxa, profundamente infantilizante, comprometida com o êxito empresarial e dependente de padrões de comportamento ultraconsumistas. Perto da assepsia executiva imposta hoje à emissora por Marluce, Boni, o seu antecessor e homem-forte da Globo durante décadas, parece quase um poeta, um empresário-aventureiro, alguém que ainda tinha veleidades intelectuais e compromissos de outra ordem que não os da qualidade total aferida diariamente pelo Ibope.
O leitor deve descontar a ironia da comparação. A verdade é que hoje os horizontes e as aspirações do país parecem reduzidos pelo discurso oficial a uma equação do tipo: "primeiro privatiza, depois consome". Este é um tempo em que a política foi confinada a uma questão de gerenciamento empresarial, em que a religião se mercantiliza e se transforma em mero veículo de ascensão social (vide o sucesso do bispo Macedo), em que a grande questão da TV se chama "guerra de audiência", em que o maior desafio do cinema nacional é a conquista da estatueta do Oscar e em que os fatos mais relevantes da cultura são a bunda de Carla Perez, o êxito comercial do pagode e a explosão da música neossertaneja.
Não me lembro de outra época no Brasil moderno, isto é, depois de 30, quando começamos a sair da roça para viver em cidades, tão hostil à civilização e tão deslumbrada com a estupidez do discurso empresarial.
Parafraseando o título muito sugestivo de uma nova revista que é a cara dos novos tempos, entramos na era do Brasil S.A. Nessa terra em que a imaginação coletiva também foi privatizada, Xuxa é sócia majoritária, a rainha do Império do Brasil.

Recebi até quarta-feira, dia do fechamento desta coluna, 81 e-mails a respeito do artigo "Pequenas empresas, grandes negócios", do qual este é uma espécie de desdobramento.
Desculpo-me por não ter tido tempo de responder a todos e aproveito para agradecer a atenção de cada um dos leitores pelos comentários.


E-mail: fbsi@uol.com.br



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