São Paulo, Domingo, 11 de Julho de 1999
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CRÍTICA

A pegadinha do Gregori

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV

Não parece séria essa cruzada do governo federal pela qualidade na TV brasileira. A rigor não se pode nem falar em cruzada, já que as autoridades agem de maneira por assim dizer espasmódica. Menos que isso, as autoridades têm vindo a reboque, apenas reagindo e quase sempre aos estímulos errados. Têm contribuído com isso tanto para que a discussão do problema se perca num lengalenga fastidioso e inócuo, como para que sirva de alimento à tara dos moralistas de plantão, sempre à cata de algum pretexto para grasnar contra o "baixo nível" da programação.
O secretário nacional dos Direitos Humanos, José Gregori, tem ocupado com certa frequência as páginas dos jornais desde que foi incumbido, ou se auto-incumbiu, da tarefa de cobrar das emissoras que elaborem o seu código de ética, cada uma o seu e segundo os seus próprios critérios, o que já de saída transforma a iniciativa em matéria-prima para o vasto anedotário em torno deste governo.
Não se deve duvidar da boa-fé do secretário (e o governo tucano, ao contrário do que possa parecer, tem gente bem-intencionada), mas é flagrante o pouco caso das emissoras diante de uma iniciativa que está fadada a entrar para o acervo das promessas não realizadas. Imagine o leitor como não devem rir do governo na intimidade os responsáveis por levar ao ar em cada emissora o que o secretário Gregori chamou há pouco tempo de "peixe podre".
O fato é que o problema, como aliás tudo que concerne este governo, imerso numa nuvem negra, tomado por uma espécie de síndrome da Família Adams, começa a resvalar para o terreno do folclore. Gregori achou por bem reagir na semana passada à xoxota tabagista que apareceu dando as suas baforadas no Ratinho.
Ameaçou incluir na nova Lei Eletrônica de Comunicação de Massa, em fase de elaboração, um capítulo proibindo a exibição de sexo e violência na TV antes das 21h30. Ora, o mesmo governo que até agora escondeu da sociedade os termos desse documento que irá estabelecer a arquitetura legal, determinar as normas de funcionamento e as formas de concessão da TV, e que vem promovendo reuniões a portas fechadas e sem acesso da imprensa apenas com as partes interessadas nesse negócio fabuloso, resolve dar satisfações à opinião pública com falas de teor vagamente censório quando uma vagina fumegante surge no ar. Há algo errado.
Proíba-se a xoxota no Ratinho e o problema permanecerá intacto porque o abuso não está aí. Por que isso seria mais nocivo ou inaceitável que a entrevista criminosa levada ao ar pela Globo no "Fantástico" com o "maníaco do parque"? E o que falar da febre de "pegadinhas", presentes em praticamente todas as emissoras?
No último sábado, para citar um caso emblemático pouco comentado, Sérgio Mallandro, essa figura impoluta da República, levou ao ar uma "brincadeira" na qual atores disfarçados simulavam uma discussão no auditório. Um deles sacou uma arma e começou a atirar a esmo. Houve início de pânico e por pouco não se viu uma tragédia. Informou-se então que as balas eram de festim. Estávamos todos assistindo a uma... "pegadinha".
Vaginas que fumam, tiros de festim para assustar incautos, entrevistas escabrosas para provocar terror e ódio no público, notas de dinheiro atiradas na cara de quem não tem quase nada, gargalhadas provocadas à custa da humilhação dos outros -toda essa delinquência é a consequência lógica da "desregulamentação" de mais um mercado. Quem afinal cultivou o cassino da guerra da audiência fazendo vista grossa para a farra do 0900 que tomou conta das emissoras, mesmo depois que sua legalidade foi posta em questão?
Este governo afinal das contas negocista, que opera, segundo as palavras de um de seus ideólogos, no "limite da ética" e que trata os assuntos do país com a desenvoltura e a fúria de um "expert" do mercado financeiro (eis mais um de seus feitos, agora na telefonia), está sendo vítima de seu próprio feitiço. Como Ratinho ou Hebe Camargo, ele é ao mesmo tempo permissivo e moralista, flerta com a sacanagem (do mercado, no caso) e saca a seguir uma palavra de autoridade para atender a demanda por ordem dos conservadores. Código de ética nessas circunstâncias? É tiro de festim. Parece a pegadinha do Gregori.


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