São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Por que a TV precisa do cinema

EUGÊNIO BUCCI

PARIS - O princípio é justo e bom. Na França, a televisão sustenta o cinema nacional, ou melhor, ajuda o Estado a financiá-lo. E ganha com isso. Desde 1984, o Canal Plus, que é privado e pago, repassa ao cinema parte de seu faturamento. Hoje, isso representa cerca de US$ 140 milhões ao ano. Em troca, tem direito de exibir os filmes com exclusividade. O apoio estatal ao cinema, ancorado na visão de que "cultura não é mercadoria" e que, portanto, não pode ser abandonada às tais leis de mercado, é uma política defendida tanto pela esquerda como pela direita francesas. É a política da chamada "exceção cultural" (o mercado livre pode correr solto, exceto nas coisas da cultura), que tem funcionado bem. De todos os espectadores que foram ao cinema em 2001, na França, nada menos que 40% foram ver um filme francês, uma porcentagem muito acima da média européia.
Recentemente, o conglomerado de mídia Vivendi Universal comprou o Canal Plus, e as coisas mudaram. Em dezembro, Jean-Marie Messier, presidente da Vivendi Universal, anunciou que não dá mais. Alega que não tem mais a exclusividade da exibição de filmes na TV (o que é verdade) e que vai ficar no prejuízo. Instalado em seu escritório de Nova York, ele declarou: "A exceção cultural francesa é a morte". Foi uma declaração de guerra, que vem sendo respondida por gente de todos os partidos. Aqui, a defesa do cinema parece ser uma questão de soberania da identidade nacional. Cada um tem lá sua visão do que quer dizer identidade nacional, mas todos defendem o cinema. Certamente, com ou sem Canal Plus, com ou sem Messier, o filme francês continuará a receber recursos da TV, e esta continuará a receber em troca bons filmes para exibir, além de bons talentos para contratar. A TV, além do país, ganha com um cinema pujante.
A tese da "exceção cultural" é lugar-comum na Europa. É uma arma contra as forças do mercado que vêm de fora ou, mais exatamente, uma arma contra o cinema americano. E no Brasil, o que temos? Não temos, nem tivemos, nada parecido. No Brasil, onde cultura é mercadoria e só mercadoria, quem dá a cara do cinema é mesmo o mercado. Mas, atenção, não é o cinema americano.
O mercado audiovisual no Brasil não é sinônimo de Hollywood. É sinônimo de televisão. E televisão é sinônimo de Rede Globo. A verdade (de mercado) é que foi a Globo quem formatou a fisionomia atual do nosso cinema. Ao longos desses 30 anos, ela formou os atores, abrigou os roteiristas, produziu diretores. Deu ao cinema muita coisa além de xuxas e trapalhões. Vejo em Paris os cartazes do filme "Eu Tu Eles", que faz uma boa carreira por aqui. É Brasil, sem dúvida. Está longe de ser Hollywood. E também é Globo. No elenco, no diretor e até na sintaxe ele é Globo. Mesmo um filme como "Um Copo de Cólera" tem algo de Globo pois, sem a Globo, aqueles talentos todos não existiriam no mercado brasileiro. Com tudo o que tem de monopólio e de manipulação, a Globo acabou suprindo, não sei se por acidente, a função de abrigar a formação de uma identidade audiovisual (termo estranho, mas vá lá) brasileira, em oposição ao domínio americano. Isso tudo sem política deliberada nenhuma. É curioso, mas é fato.
E também é pouco. Alguns canais pagos já ajudam na produção de filmes, mas ainda é pouco. A televisão, o principal negócio de mídia no Brasil, deve ser chamada a apoiar pesadamente o cinema. É do interesse dela, além de ser do interesse do país. Mais aberto a experimentações, o cinema é que deveria funcionar como o celeiro de talentos e de idéias para a televisão, nunca o contrário. A TV deveria financiar o cinema, um cinema radicalmente brasileiro, porque poderia buscar nele algumas saídas para a pasmaceira estética em que se encontra.



Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo
Próximo Texto: Filmes e TV paga
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.