São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998

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CRÍTICA
Muita saliva, pouco jornalismo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

A Copa do Mundo é um evento da televisão. E televisão funciona para ser vista, mais do que ouvida. Comentário acaciano, sem dúvida. Até ocioso, se a nossa TV não insistisse em fazer da cobertura da Copa um falatório infindável. Sobram programas com especialistas e diletantes acotovelados em torno de uma mesa, discutindo como se estivessem definindo os destinos da humanidade, e faltam imagens, criatividade e sobretudo informação. Conhecendo-se as possibilidades técnicas e os investimentos das emissoras, a cobertura da Copa é quase uma decepção.
Nem mesmo os treinos da seleção de Zagallo conseguimos ver direito. E onde estão as reportagens sobre as outras seleções? Alguém viu um único treino da Escócia? Alguma reportagem digna do nome sobre Noruega ou Marrocos, Argentina ou Alemanha? Entrevistas interessantes com craques que não os brasileiros? E informações, mesmo que básicas, sobre um pouco da vida de cada país? Se alguém viu alguma coisa parecida com isso, teve sorte. O grosso da TV tem passado ao largo da notícia.
São também em geral indolentes e tolas as matérias de apoio, aquilo que em jargão jornalístico se conhece por "side", isto é, reportagens secundárias encarregadas de desenvolver aspectos específicos do tema central (no caso os jogos), agregar dados, análises, situações curiosas -enfim, dar um pouco de tempero e sabor inusitado ao prato principal.
Nada impede que os "sides", pelo fato mesmo de não terem maior compromisso com as "hard news" (notícias mais importantes), sejam ousados, graciosos, e, por que não?, até inteligentes. Mas o que têm sido as matérias de apoio na TV? Um pouco mais do que um amontoado de clichês estúpidos.
Nem a empresa de turismo mais massificada (embora falar em turismo não massificado seja no fundo um contra-senso) seria capaz de fazer um roteiro de Paris tão vulgar como o que temos visto. Isso para não falar da frequência com que surgem na tela as hordas de brazucas fantasiados, arrotando bobagens e fazendo macacadas embaixo da Torre Eiffel. Dizer que isso é constrangedor é uma gentileza.
Afora isso, é preciso dizer duas palavras sobre o ufanismo, em homenagem à vulgaridade. A Globo, a emissora que tem um caso de amor com o Brasil, é líder também nesse aspecto. O fantasma da concorrência até que obriga a emissora a botar um certo freio na patacoada nacionalisteira, mas ela volta como que por obra da natureza. A cobertura da Globo, muito superior às demais em recursos técnicos, é contaminada pelo vício do melodrama, por uma espécie de tentação mexicana, por uma intenção de arrancar do espectador emoções as mais previsíveis e sentimentos patrióticos os mais dispensáveis.
Semanas antes da Copa, quando a zorra da CBF veio à tona, deixando evidente o grau de despreparo e amadorismo de quem dirige o futebol brasileiro, para não dizer coisa pior, a Globo ensaiou algumas críticas, foi induzida a fazer um pouco de jornalismo.
Aproximando-se a data da estréia, no entanto, veio à tona o verdadeiro Galvão Bueno e sua equipe de jornalistas-escoteiros. Até reportagem para reabilitar Bebeto a emissora se encarregou de fazer, cumprindo à risca sua vocação oficiosa.
Não desconheço que a Copa do Mundo mexe com os nervos da gente e provoca emoções fortes em quase todos os brasileiros, inclusive jornalistas, é óbvio. Mas o jornalismo esportivo em geral, e o televisivo em particular, exceções confirmando a regra, ainda vive numa espécie de era primitiva. É demasiadamente promíscuo. Ganharia muito em qualidade se investisse um pouco mais de energia em objetividade e distanciamento. Senso crítico, é bom dizer, não se mede pela quantidade de veias que saltam do pescoço ou pela quantidade de perdigotos que pulam da boca dos comentaristas na hora de achincalhar Zagallo, mas por uma atitude menos comprometida com o objeto de análise. A figura lúcida e serena de Tostão, craque também como comentarista, talvez seja a melhor tradução disso. Mas o Ronaldinho da TV, se podemos falar assim em termos hiperbólicos, é José Trajano, uma prova de que até no Brasil ufanista da corrente pelo penta sobra espaço para falar de futebol com inteligência e ironia fina -ou, se quiserem, dosando raiva, paixão e paciência.
E dá-lhe ameriquinha, que ninguém é de ferro.



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