São Paulo, domingo, 15 de julho de 2001

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CRÍTICA

O papel da TV pública

HÉLIO SCHWARTSMAN

A TV e a alta cultura, tradicionalmente, não se dão bem. Nos anos 70, pais intelectualizados chegavam a proibir seus filhos de assistir à "máquina de fazer doidos". Embora não existam limitações teóricas à possibilidade de a televisão produzir e exibir bons programas culturais, é forçoso reconhecer que essas ocorrências são pelo menos raras.
Um dos mais felizes e longos casamentos entre cultura e TV acaba de terminar. Não aqui, mas na França. Foi pela última vez ao ar no dia 29 de junho "Bouillon de Culture" ("Caldo de Cultura"), do jornalista Bernard Pivot. Era um programa em que se discutia literatura. Pivot mantinha uma emissão literária semanal havia 28 anos.
Foi um divórcio com fausto. Pivot foi celebrado por toda a imprensa. Seu nome é hoje o preferido por 28% dos franceses para ocupar o posto de ministro da Cultura.
O formato dos programas não era exatamente inovador. Tratava-se basicamente de entrevistas com autores. Em quase 30 anos, foram mais de 6.000 entrevistas. O detalhe é que Pivot lia mesmo os livros sobre os quais fazia as perguntas. Ele diz que reservava 14 horas de seu dia para leitura.
A lista de autores que compareceram "chez Pivot" impressiona: Vladimir Nabokov, Georges Simenon, Marguerites Yourcenar e Duras, Alexander Soljenitsin, Lévi-Strauss, Norman Mailer, Umberto Eco. Os presidentes Valéry Giscard d'Estaing e François Mitterrand também se apresentaram -e por terem escrito livros. De brasileiros, estiveram Jorge Amado, Paulo Coelho, Chico Buarque. Charles Bukowski foi ao programa em 1978. Tomou, ao vivo, um porre homérico (seis garrafas de Sancerre).
Aparecer no "Bouillon" era garantia de boas vendas na França. O programa era assistido por cerca de 850 mil pessoas. A questão, inescapável, é: se o programa fazia tanto sucesso, por que acabou? A resposta não é trivial.
Segundo Pivot, a fórmula "salão literário do século 18" se esgotou. O jornalista, porém, não esconde que houve desentendimentos entre ele e a emissora, a France 2, que é pública. A desavença se deu em torno do horário. Historicamente, o programa era apresentado às 21h30. Nos últimos tempos, porém, a France 2 o estava empurrando para o fim da noite. A última transmissão foi ao ar às 22h50.
O que está em jogo aqui é o próprio papel de uma TV pública. De um lado, "Bouillon" era um programa que reunia alguns dos principais elementos esperados de um canal público: era educativo e reforçava a identidade cultural francesa. Como um bônus, até apresentava audiência. O ponto é que não tinha telespectadores o bastante para seguir no horário nobre, no qual uma programação mais "comercial" obteria melhores índices. E, embora um canal sem fins lucrativos não precise "vender a alma" pela audiência, ninguém, nem mesmo o Estado francês, quer uma TV pública que amargue repetidos traços no ibope. No limite, não há sentido em aplicar recursos numa emissora a cuja programação ninguém assiste.
O que me interessa aqui é refletir sobre a viabilidade da TV pública num ambiente em que existem também TVs comerciais. Embora em princípio uma não exclua a outra, as coisas talvez não sejam tão simples.
Apelo para a teoria dos jogos, na zona fronteiriça entre a matemática, a biologia e a economia. Imaginemos uma espécie de morcego albino cujos exemplares possam adotar duas estratégias de sobrevivência: ou cooperar com seus semelhantes ou tentar passar-lhes a perna sempre que possível.
Individualmente, é vantajoso infringir as regras da cooperação. O morcego burlador se alimentará melhor do que os outros e desfrutará de mais morcegas, gerando mais morceguinhos. Só que, se o sucesso reprodutivo dos morcegos rebeldes for muito grande, e o número de indivíduos dessa cepa aumentar demais, a estratégia deixa de ser vantajosa. Não dá para ser "esperto" sem que existam "trouxas". Os portadores de genes egoístas já não farão tanto sucesso entre as morcegas e seu número tende a diminuir, restabelecendo-se assim a moralidade quiróptera.
Não sei se, nessa história, a TV pública representa o morcego bonzinho ou o mais sacana, mas o exemplo serve para mostrar que complexas interações entre indivíduo e comunidade tendem matematicamente a favorecer padrões, inclusive comportamentais.
Minha dúvida é se, num ambiente onde existem TVs comerciais, a TV pública pode sobreviver e, mais do que isso, prosperar. É claro que sempre haverá espaço para atrações inteligentes, nem que seja em horários improváveis da TV fechada, mais ou menos como os programas dedicados à pesca ou a motoristas de caminhão. Mas receio que, num contexto de "livre concorrência", a TV pública com sua programação cultural seja aritmeticamente refreada por sua homóloga comercial.
É claro que não faz o menor sentido tentar inventar mecanismos para forçar as pessoas a assistir o que não desejam, mas isso não nos impede de lamentar o triste destino da boa TV pública.


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