São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

O tempo congelado (e quente)

EUGÊNIO BUCCI

LOGO na véspera de 11 de setembro, as imagens começaram a desabar em avalanche. Outra vez, como há um ano, as torres do World Trade Center ruíram sob o cerrado bombardeio dos aviões de carreira. Em videoteipe, o passado foi (e é) presentificado. As torres foram imortalizadas assim, em movimento, num desmoronamento sem fim. Os bombeiros de Nova York entraram outra vez em gozo de heroísmo. Um deles apareceu no "Jornal da Globo" para dizer que odeia os inimigos. Um outro se locomoveu até o Brasil para dar uma entrevista a Jô Soares, que até ganhou um boné com a inscrição "11 de setembro, nunca esqueceremos". E, a toda hora, em todos os canais, as torres, sempre. A nuvem densa, escura e monstruosa que engoliu o sul de Manhattan naquela manhã de sol nunca mais se desfez. Aliás, o sol daquela manhã nunca mais se pôs. O estrondo persiste, os gritos dos transeuntes não se calam, a poeira sobre os rostos em pânico, as lágrimas, tudo permanece: desde 11 de setembro de 2001, o tempo histórico está interrompido. Mas não está silencioso: ele ruge. O tempo está congelado. Mas não está enregelado: ele arde a uma temperatura escaldante.
É o que a TV nos traz. Um quadro estranho, ilógico. O movimento é intenso. E, no entanto, não se vai a lugar algum. As coisas não avançam e nem recuam. E, no entanto, não param. Difícil explicar exatamente. Talvez o tempo histórico esteja assumindo em todos os sentidos o aspecto de um televisor no meio da sala de estar: dentro dele, as imagens velozes vão e vêm, incessantes, mas ele mesmo, televisor, está ali, parado, feito um rádio de válvulas, que não sai do lugar.
Bin Laden, o próprio, é um que vai e vem, feito um fantasma na tela da TV. Está morto e está vivo. Está sumido e está presente. Seu turbante e sua barba entram e saem de foco, como um prenúncio ou um resíduo, um dom Sebastião às avessas, que a qualquer momento voltará de uma guerra santa como num truque de efeito especial. Bin Laden tem um quê de místico, do outro mundo, do além.
Quanto a George Walker Bush, este é um ser do aquém. Estava aquém do momento e, mesmo assim, usurpou a cena. Seus cabelos branquearam, é verdade, como que a sinalizar que os anos teriam passado e que a maturidade lhe teria vindo em socorro. Mas até aí Bush surge como simulacro, um personagem de novela, um Moisés de Charlton Heston que acaba de descer do Monte Sinai com aquela peruca alva esculpida em laquê. A despeito da cabeleira que ele usa como quem carrega uma coroa, tudo está como antes: o império busca vingança, como buscava há um ano, e não consegue consumá-la. Bush é um personagem que erra o endereço do alvo em busca de um alvo que não mude de endereço. Na falta de um Bin Laden, que se desmaterializou, quer alvejar Saddam Hussein.
Enquanto isso, as torres gêmeas caem e caem e caem, em rede mundial de TV. O tempo parou ali, no 11 de setembro de 2001. Os coadjuvantes estão se cansando (os estadistas europeus hesitam em apoiá-lo em mais uma operação militar), a platéia está dando sinais de enfado (nos Estados Unidos e no resto do mundo, o furor beligerante das massas anda arrefecido), mas não adianta: ainda estamos vivendo o 11 de setembro de 2001.
Agora é assim, a história acontece segundo esse tempo totalizante da TV, um tempo que aprisiona o passado em videoclipes (o que não pode ser esquecido vira presente constante, como Elvis, que não morreu, e os edifícios do World Trade Center, que jamais terminaram de afundar no chão) e que retarda o futuro para depois dos intervalos comerciais (agora monopolizados pelos interesses da indústria bélica). O tempo na TV não evolui linearmente, mas se sucede em grandes bolhas. O problema é que, às vezes, as bolhas, aparentemente congeladas, acabam explodindo.



Texto Anterior: Astrologia - Barbara Abramo
Próximo Texto: Filmes
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.