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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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CRÍTICA

A histeria dos números

BIA ABRAMO

QUANDO estreou a nova novela "das oito", um suspiro de alívio parece ter partido da Globo e ecoado pela mídia em geral: depois daquilo que foi classificado como o fracasso de "Esperança", "Mulheres Apaixonadas" começou bem em termos de audiência, manteve índices considerados aceitáveis, e, até agora, tudo indica que vá vingar, ainda tendo como parâmetro os números. A fórmula teria sido reencontrada e a novela "das oito" estaria salva.
É curioso como o noticiário sobre TV espelha preocupações que deveriam ser das emissoras: em relação a "Esperança", praticamente não se falava em outra coisa a não ser na audiência e nos fatos e boatos sobre os atrasos do autor (ah, sim, e alguma coisa sobre a série de acidentes que marcaram as gravações). A novela, dizia-se, foi mal, pois não havia atingido os patamares obtidos pela antecessora, "O Clone". Olhando mais de perto, a impressão que se tem é de que, na verdade, o quadro não é tão pavoroso assim. No 177º capítulo, na média geral (ou seja, calculada desde o primeiro capítulo), "Esperança" registrava 38 pontos no Ibope, o que equivale a 56% dos televisores ligados naquele horário (o "share").
Enquanto isso, "O Clone" registrava 45 pontos de média geral no Ibope (66% de "share"), na mesma marca do 177º capítulo. Essas diferenças devem lá fazer algum sentido para quem é dono do dinheiro. Mas, e para o espectador, fazem? A resposta, dada a histeria de concorrência que parece ter assolado a Globo, é afirmativa. Em nome dessas diferenças que só deveriam preocupar executivos regiamente pagos para isso, novelas são encurtadas, mutiladas e sofrem intervenções estapafúrdias. Além de "Esperança", em que a emenda não melhorou em nada o soneto, "Coração de Estudante", uma daquelas novelas caseirinhas, transformou-se em um grotesco imbróglio pornô-soft, e a ótima comédia "As Filhas da Mãe" teve sua duração drasticamente reduzida.
Os ibopes dessas novelas não foram acachapantes, mas deveriam ser? Será que isso quer dizer que o público rejeita em bloco tais estilos -dramas de época lentos, comédias românticas ingênuas ou chanchadas com um pé no nonsense- ou aponta qualquer outra coisa que não tem nada a ver com as opções dramatúrgicas, estéticas e técnicas de um formato? Em outras palavras, há uma relação direta entre o gosto do público e os números?
Novamente, sim seria a resposta automática e falsa. Talvez até soasse verdadeira, se estivéssemos no Brasil dos anos 70, em que se costumava pensar no público de forma homogênea com melhores resultados, mas não se pode esquecer que, neste período, a Globo detinha algo muito próximo do monopólio do entretenimento, ou seja, aquilo que a Globo ditava tornava-se o gosto e traduzia-se em números por falta de alternativa.
Trinta anos mais tarde, é ainda mais falaciosa. No terreno dos meios tecnológicos, apareceram novas formas de entretenimento, como o videocassete, a TV por assinatura, o video game, a internet e o DVD. Isso sem falar nas modificações sócio-econômicas, que culminaram, por exemplo, com a explosão do consumo entre as classes D e E durante o governo FHC (embora aí resida uma armadilha, perigosíssima, que atribui à chegada das classes populares ao mercado todos os males relacionados à qualidade, sem lembrar que, em tempos de capitalismo feroz, a ordem é fazer mais por custo menor, de papel higiênico a novelas).
O Brasil, portanto, mudou, e fica difícil, se não impossível, falar em "o público", e arriscado, se não irresponsável, fazer quaisquer ilações sobre "o gosto", como se ambos, público e gosto, ainda existissem no singular.

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biabramo.tv@uol.com.br


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