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CRÍTICA
Novelas podres e realidades vibrantes
ALCINO LEITE NETO
É SEMPRE a realidade que socorre a ficção,
quando esta entra em crise narrativa.
O sucesso das novelas brasileiras, por exemplo, depende do "realismo cotidiano" como você e eu dependemos de oxigênio. No Brasil, o efeito "realista" das novelas é historicamente proporcional ao fascínio exercido sobre o público e uma vantagem sobre a sua
grande rival no mundo: a teledramaturgia mexicana.
Nos anos 60, quando ninguém aguentava mais aqueles
melodramas estrangeiros ambientados na Veneza dos
doges ou na Chicago dos gângsteres,
criou-se a telenovela propriamente brasileira, baseada nas vidas, nas falas e nos
dramas do dia-a-dia do país.
"Beto Rockefeller" (1968), de Bráulio
Pedroso, foi o primeiro desses folhetins
"realistas", que, mantendo algumas regras essenciais do gênero, passaram a
privilegiar nas novelas a linguagem despojada e "espontânea", os temas cotidianos do país e a descrição provocadora de
nosso quadro social contemporâneo.
Em algumas delas, o "efeito realista"
foi devastador -como em "Bandeira 2"
(1971), de Dias Gomes, sobre a guerra do
jogo de bicho no Rio. Seu equivalente para estes dias deveria abordar a guerra do
tráfico de drogas na cidade.
Ou, ainda, "O Rebu" (1974), também
de Bráulio Pedroso, sobre a investigação
de um assassinato durante uma festa de
ricaços no Rio de Janeiro -e ao mesmo
tempo uma radiografia da classe alta brasileira. Uma versão atual poderia tratar da elite política corrompida.
Outras novelas fincavam os pés nos costumes do país,
como a notável "Irmãos Coragem" (1970), de Janete
Clair, sobre disputas num garimpo e que narrou pela primeira vez os dramas de um jogador de futebol.
Talvez tenha sido também Janete Clair quem retratou a
primeira família de evangélicos na TV, em "Selva de Pedra" (1972), a amarga e moralizadora saga de um "self
made man" no bojo da euforia do "milagre brasileiro".
Hoje, os principais teledramaturgos já passaram dos 50
anos. Para eles, redigir centenas de diálogos diariamente é
como cair num triturador de ossos. Mais difícil ainda é ter
que descrever um cotidiano no qual eles não estão inseridos com a mesma desenvoltura de antes. Quando Gilberto Braga escreveu, em 1978, a deliciosa "Dancing Days",
sobre a febre das discotecas, ele tinha 32 anos. Seria um
delírio imaginá-lo criando agora uma hipotética "Rave
Days", sobre a onda de festas juvenis regadas a tecno.
Por isso, hoje as novelas "históricas" passaram a ser tão
frequentes. Elas criam mundos paralelos auto-suficientes, que não precisam dar satisfação aos dramas atuais.
Por isso, ainda, novelas ditas adolescentes são tão ridículas: são feitas por senhores que acham os jovens idiotas.
Todo o comentário acima tem por objetivo ressaltar as
qualidades de um novo programa da MTV, "20 e Poucos
Anos", exibido nas quartas-feiras, às 23h.
Não se trata de uma novela, mas de uma espécie de documentário sobre a vida de oito jovens em São Paulo.
A apresentação dos "personagens" e das "cenas", porém, obedece em tudo a um desenvolvimento de tipo dramático, adaptado à linguagem característica da emissora
de videoclipes -câmera na mão, cortes rápidos, falas curtas.
No primeiro episódio, os jovens
(idades entre 19 e 26) foram introduzidos ao espectador: um é feirante, o outro luta jiu-jítsu; uma é produtora de
eventos e a outra dança hip hop.
No episódio seguinte, o espectador
acompanhou as atividades de alguns
dos jovens e o primeiro encontro
ocorrido entre eles. É a reunião dessas
pessoas o principal trunfo do programa -e também o seu "suspense".
Sendo umas ricas e outras pobres,
umas moderninhas e outras antiquadas, umas preconceituosas e outras liberais, terão que enfrentar seus parti-pris e diferenças e aprender a reconhecer a dignidade do outro.
O programa forja o menor número
possível de situações. Prefere seguir a
vida comum dos jovens ou deixar que
eles próprios definam os acontecimentos futuros.
No segundo episódio, por exemplo, a câmera seguiu o
feirante em seu trabalho e testemunhou a frustrada procura de um emprego pela dançarina de hip hop. As sequências ultrapassaram a banalidade do registro, pelo interesse, a objetividade e a emoção com que foram feitas
-instalando um pequeno momento de verdade na TV.
Comparado ao feirante de "20 e Tantos Anos", o de
"Uga Uga" é uma tolice. Não tanto por ser um feirante de
fantasia, mas porque nada tem de palpável e relevante a
dizer sobre um personagem deste nosso mundo.
Como documentário de TV, "20 e Poucos Anos" apresenta muitas limitações, sobretudo quando se submete à
esquizofrenia do clipe e não dá tempo à observação e ao
diálogo. Aproxima-se também perigosamente do "sensacionalismo da intimidade" em voga -mas esperemos
que mantenha sua curiosidade por situações objetivas.
De todo modo, programas como esse são uma inspiração para a narrativa atual na TV. Com a ajuda de "20 e
Poucos Anos", as novelas talvez possam reanimar seu interesse pela realidade brasileira, o mesmo que fez desse
gênero tão reles um significativo fato cultural no país.
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