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CRÍTICA
"No Limite" entre o chato e o filosófico
HÉLIO SCHWARTSMAN
CONFESSO que não compreendo bem essa onda
de "reality shows" que tomou conta das TVs, no
mundo e no Brasil. Por aqui, o programa que melhor representa essa tendência de substituir a ficção pela "realidade" é "No Limite", da Rede Globo, que já
está em sua segunda edição.
Em princípio, o telespectador típico, quando liga o aparelho de TV, está em busca de recreação, uma esfera tradicionalmente mais afeita ao domínio da ficção do que do
real. Nem poderia ser de outra forma. A realidade é, no
mais das vezes, aborrecida, sem ritmo ou
então desmedidamente cruel, arrasadora. Não há romance possível na queda de
um avião que não deixe sobreviventes.
No geral, a novela é infinitamente mais
interessante que o mundo real, não importando muito aqui o significado de
"real". É verdade que a arte imita a vida,
mas o faz melhorando-a, tornando-a
mais romanesca, mais humana.
Vale lembrar que "recreação" vem do
verbo latino "recreo", que significa "criar
de novo", "renovar". Quando em referência ao corpo ou à mente, "recreo" tem
o sentido de "recobrar-se", "convalescer", "estimular" e, daí, "divertir-se". Assim, a diversão, que tem poderes curativos, é essencialmente algo recriado, algo
aperfeiçoado pelo engenho humano.
O paradoxo dos "reality shows", contudo, não está num suposto desvio das
funções recreativas da TV. Na verdade,
chamar qualquer coisa exibida na TV de "reality show" é
uma impostura, uma tremenda de uma mentira.
Não estou afirmando que até o noticiário televisivo seja
necessariamente falso, embora, num sentido mais amplo,
essa interpretação seja cabível, e não só para a TV. Quero
dizer que o que é chamado de realidade em "No Limite"
ou qualquer outro programa do gênero tem muito pouco
de realidade. Os personagens se dirigem à câmera de um
modo sem paralelo no mundo real. A câmera se torna
personagem, um interlocutor que não existe de verdade.
Os protagonistas fazem diante das lentes coisas que não
fariam em circunstâncias normais. Cria-se uma situação
em que é impossível "observar" sem, ao fazê-lo, alterar o
observado.
Nem mesmo para o telespectador o "reality show"
guarda realismo. Para começar, as imagens são todas devidamente editadas. E é exclusivamente nessa edição que
a história é contada. Não existe uma narrativa natural, um
ponto de vista absoluto. A temporalidade da ação também é totalmente alterada. É fácil imaginar o quão maçante seria um "No Limite" em tempo real, em que cada
segundo transcorrido na chapada fosse levado sem edição à casa do telespectador. As várias câmaras necessárias
para contar integralmente as histórias de todos os personagens exigiriam um tempo de transmissão equivalente
às 24 horas do dia multiplicadas pelo total de dias e pelo
número de participantes. Seria uma programação que irritaria até faquires pacifistas em coma profundo.
Realidade na TV é uma impossibilidade teórica. Mesmo eventos sobre os quais a câmera em princípio não
atua, como uma partida de futebol, têm sua narrativa definida pelos câmeras e pelo editor, de modo não-natural.
Se fosse dado ao árbitro consultar
um "replay", o próprio curso do jogo
seria alterado pela TV. Aquela falta
feita às costas do juiz não passaria impune, a incidência de pênaltis não-marcados seria fortemente reduzida.
Num certo sentido, quando um
"reality show" se proclama "real", está
tentando dizer que é uma ficção de
outra ordem, uma representação que
permanece representação, mas que
tem a pretensão de ser uma ficção menos fictícia do que, digamos, a novela.
Parece haver aí uma tentativa de
aproximar o mundo da TV do telespectador. A ação que de fato transcorre num "No Limite" é pífia. Em termos objetivos, os eventos não passam
de uma gincana de adolescentes -e
adolescentes particularmente imbecilizados, acrescente-se. O que seduz no
programa não é, portanto, seu conteúdo propriamente dito, mas o fato de ser protagonizado
por gente "de verdade" e não artistas. É notável que os
participantes, ao serem escolhidos, já se tornam astros,
esvaziando um pouco a proposta de levar gente normal à
tela. O programa passa a operar como loteria. Pessoas comuns obtêm a chance de se tornar astros. Há o prêmio
em dinheiro, a fama rápida, a possibilidade de posar para
revistas masculinas, femininas ou gays -mais dinheiro.
Todo o processo lembra um pouco o poeminha "Do Rigor na Ciência", de Jorge Luis Borges, em que o escritor
argentino conta a história do Império que levou a arte da
cartografia à perfeição. O mapa de uma Província era tão
detalhado que tinha o tamanho de uma cidade. O mapa
do Império ocupava uma Província. O Colégio de Cartógrafos, contudo, achou que era pouco. Fizeram um mapa
do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia
com ele ponto a ponto. As gerações seguintes, menos viciadas no estudo da cartografia, entenderam que um mapa assim era inútil. Deixaram-no ser destruído pelas inclemências do sol e dos invernos.
"No Limite, 1, 2 ou 3", é um programa meio chatinho,
mas um excelente problema filosófico.
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