São Paulo, Domingo, 18 de Julho de 1999
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CRÍTICA

No ar, a República Tabajara

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV

Já tem até tucano meio arrependido achando que o Brasil não é mais legal, que perdeu a graça. Também na TV, depois que o programa de Regina Casé foi domesticado, mudou de nome e se transformou numa espécie de muvuca entre amigos, centrado no próprio umbigo, uma versão modernosa ou alternativa do quadro "Intimidade", da Xuxa, parecia não haver mais nada digno de nota, no bom sentido, na Globo.
Mas há. Não é de hoje que o "Casseta & Planeta" se transformou na opção ao mesmo tempo mais divertida e inteligente da TV aberta. Em parte, certamente, porque eles próprios melhoraram, ficaram mais sofisticados e certeiros; em parte, talvez, porque o país tenha piorado, ampliando o leque de horrores passíveis de tratamento humorístico.
Há, de qualquer forma, um início de clima de revanche do país contra a sua própria boçalidade, uma desconfiança saudável das promessas da moeda forte e das ilusões da modernidade, uma vingança de "Bundas" contra "Caras". Não é a política, em sentido estrito, que o humor começa a pôr em xeque, mas um estilo de vida, o espírito de uma época que tentamos assimilar, de maneira espalhafatosa, como de hábito.
Em novembro de 97, escrevi uma coluna a respeito do "Casseta". Questionava o espírito de porco do grupo, a forma com que avacalhavam tudo e todos, e sugeria que na economia interna da Globo o programa poderia funcionar como válvula de escape oposicionista para compensar a vocação adesista da emissora (aos poderosos de turno).
Tenho hoje muitas dúvidas a respeito do teor "conspiratório" da análise e me arrependo especificamente de ter dito que eles às vezes eram "quase fascistas".
Humor e correção política definitivamente não formam par e, bem pesadas as coisas, há muito mais barbaridades e preconceitos contra negros, homossexuais e pobres em programas humorísticos popularescos, do tipo "Trapalhões", "A Praça É Nossa", "Escolinha do Professor Raimundo" e similares do que no escracho deslavado dos "cassetas".
Dentro do humor brasileiro, eles significam um choque de realidade, uma revolução modernizadora num ambiente que durante muito tempo ficou sob o controle fossilizante de três ou quatro barões e suas fórmulas prontas.
Intriga, de qualquer forma, que tenham o espaço que têm -uma vez por semana em horário nobre- para dizer o que dizem e sobre quem dizem justamente na Globo. Sabe-se que nada na emissora é gratuito e que até a respiração dos apresentadores dos telejornais é controlada com lupa e monitorada com mãos-de-ferro. O sucesso de audiência não explica tudo. Seria fácil para a Globo encontrar um programa menos porra-louca para substituí-los.
Mas a aparente liberdade do humor que não poupa ninguém e se dirige sobretudo contra os poderosos nem sempre resulta na esculhambação de todos os personagens que estão na berlinda. A metralhadora giratória parece às vezes ser estranhamente seletiva.
E aqui novamente as coisas se complicam. Tome-se o programa da última semana. Piadas sobre o Paraguai e a farra do contrabando na fronteira, gozações em cima de Galvão Bueno e do técnico "Desfilei Luxemburgo", chacotas em torno do "Mister PM" (uma maneira explícita de ridicularizar o "Fantástico" e dizer ao mesmo tempo que a polícia por aqui é corrupta e gosta de tortura) -a lista de alvos é extensa e aparentemente mexe com gente e interesses nada desprezíveis.
A maior vítima do programa, porém, continua sendo o presidente da República. Ele aparece no orelhão ostentando a sua faixa. Uma voz pergunta: - É de Brasília? E o cover de FHC responde: - Meu filho, não sei se você sabe, mas os telefones do Brasil mudaram. Se você quiser falar com quem manda, agora tem que ligar pra Bahia.
Surge então o slogan da "Tabajaratel", uma delícia de escárnio. O país retratado pelo "Casseta" parece mesmo uma imensa Tabajara. Nada funciona, tudo dá errado, tudo é motivo para chacota e frustração. O presidente, como a república, é um banana. E ACM? Por que não tripudiar também sobre "painho"? Não é ele, afinal, quem manda? Vendo o programa, fica-se com a sensação de que é muito mais fácil (ou menos arriscado) achincalhar o presidente e a república dos tucanos do que importunar o imperador da Bahia e seus domínios.
Tudo bem, o senador já entrou na dança de maneira mais explícita, e até num programa recente, mas nada parecido com o que ocorre em relação a FHC, por quem a turma do "Casseta" já perdeu as últimas migalhas de consideração há algum tempo.
FHC estaria se "sarneyzando" ou antes é o país que estaria se "aceemizando"? Como uma hipótese não exclui a outra, pode-se pensar que ambas as coisas fazem sentido, e que até a turma da vanguarda do humor carioca, apesar de todo o seu desprendimento e inteligência, está caindo no conto do acarajé. O que não seria má versão para a República Tabajara.


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