São Paulo, Domingo, 19 de Setembro de 1999
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CRÍTICA

Era Collor -segunda dentição

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV

Fernando Collor está de volta. Reapareceu sábado passado no "Programa Raul Gil", participando do "quadro do chapéu". Para quem nunca viu, trata-se do seguinte: o convidado é posto diante de dez chapéus pendurados numa parede, com alguma coisa escrita na parte interna, que o público não vê; a brincadeira consiste em saber para qual das personalidades/entidades ali gravadas ele "tira o chapéu" e por quê.
O quadro, um dos mais esperados do programa, é um prato cheio para o apetite de políticos que, ajudados pela sabujice contumaz do animador, o utilizam como vitrine e fazem a sua autopropaganda. Paulo Maluf, Lula e José Serra são três dos figurões que recentemente passaram por lá, exercitando um populismo para lá de primitivo. Que pessoas públicas supostamente sérias (não é o caso do ex-prefeito) se submetam, e de bom-grado, a esse espetáculo em que circo e política se sobrepõem e se confundem é obviamente um problema.
O comportamento do auditório (por definição de manada), a música de suspense pontuando a revelação do conteúdo de cada chapéu e a performance do apresentador, ora grave ora palhaço, mas invariavelmente regressivo, dão ao conjunto um ar "afascistado".
Pois bem, nesse ambiente em que impostura e entretenimento se misturam, Collor fez um tremendo sucesso. O quadro registrou picos de audiência acima de 20 pontos no Ibope e a platéia chegou a gritar em coro "Fernando! Fernando! Fernando!" no momento em que o ex-presidente surgiu no palco, punho cerrado para cima, gesto (também "afascistado") que o caracterizou em 1989.
Raul Gil preparou bem a recepção do convidado, tratando de associá-lo a Jesus. "Quem nunca errou?", perguntava antes da aparição de Collor, completando a seguir: "Ninguém vai mudar o pensamento de ninguém. O que você pensa é seu. O que você acredita é seu. Ninguém deve meter-se no seu voto. Ninguém deve meter-se naquilo que você quer, porque nós temos Jesus no coração. Ele, que nos ensina e nos dá oportunidade de ser o que somos".
O discurso e o que veio a seguir sugerem um programa encomendado (embora não se possa afirmá-lo) e, como Collor é virtual candidato à prefeitura de São Paulo, é mais do que legítima a desconfiança sobre algum tipo de relação, digamos, menos circunstancial e mais profunda entre o bispo Edir Macedo e Collor.
Não há dúvida de que o neoprotestantismo ultrapragmático da Igreja Universal, cuja força reside na promessa de ascensão social dos fiéis, encontra um forte aliado na atitude messiânica e na retórica salvacionista de Collor.
O "eterno presidente", como a ele se referia Raul Gil, estava mais inseguro e menos impulsivo do que nos tempos heróicos. Procurando mostrar maturidade, fruto de "anos de sofrimento", ele parecia um clone pálido de si mesmo, aspecto esse de replicante acentuado pelo novo sorriso (resultado de um recapeamento na dentição), mais do que nunca postiço.
Esse Collor "maduro" e recauchutado tirou o chapéu para o "povo brasileiro", para o cantor Reginaldo Rossi e para "os aposentados" (vítimas de FHC); negou-se a tirar o chapéu para Celso Pitta, Itamar Franco e FHC, entre outros. O "conteúdo" dos chapéus não deixa muitas dúvidas sobre os propósitos do programa. Collor teve oportunidade de dizer que o atual presidente é fraco, um ventríloquo da equipe econômica e do FMI, e repetiu a versão de que um golpe das elites o afastou da "sua gente". É a volta do líder das massas autoritário, isto é, do populismo de direita.
Essa nova era Collor que se anuncia não necessariamente está vinculada à figura do ex-presidente. É, aliás, muito mais provável que o próximo Collor não seja ele próprio, mas algum outro "salvador da pátria" capaz de recolher o saldo da desagregação social ora em curso -e para a qual chamou atenção esta semana ninguém menos que o chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso. Está longe de ser louco, portanto, quem hoje supõe que FHC será sarneyzado até o final do mandato (final?) e que um novo messias da ordem contra o caos será encampado pelas elites e vendido às massas (será Ciro Gomes? ACM? Garotinho? algum outro? Terá farda?).
Quem assistiu ao programa "Você Decide" da semana passada terá percebido que também na Globo há sinais de nova era Collor no ar. O programa, ao lado do "Linha Direta" o mais populista da emissora -ambos também "afascistados"- , tinha na penúltima quinta-feira o título de "Robin Hood Aposentado" (aqui novamente as vítimas de FHC).
Resumindo: um casal de idosos (Gianfrancesco Guarnieri e Eloísa Mafalda) que vive um cotidiano de privações "rouba" um banco por acaso, porque o caixa acreditou estar sendo vítima de um assalto inexistente e lhe entregou o dinheiro. Os dois então doam o que "receberam" para um orfanato à beira da falência e tomam gosto pela boa ação ilícita.
Passam a roubar (brinquedos, jóias, remédios) para distribuir aos necessitados. A dona do orfanato descobre a origem das doações e vive um dilema: denunciar ou não os velhinhos? "Você entregaria um casal tão simpático e bem-intencionado às autoridades? Aqui, você decide", diz Celso Freitas. Resultado: 90 mil ligações a favor dos velhinhos, 38 mil contra. São "absolvidos".
Qual a moral da história? Não será ela uma espécie de fenômeno Hugo Chávez versão Jardim Botânico? Não estarão os simpáticos velhinhos a nos dizer em linguagem global e cifrada as mesmas coisas que o general Cardoso -a tensão social está chegando ao limite? E quando ela chegar? Será possível burlar a lei ou aposentar a democracia para "salvar o país necessitado"? Ou será que entre o ressurgimento de Collor, a mensagem de Robin Hood e o aviso do general não há relação alguma, mas apenas simultaneidade? São apenas perguntas e uma sensação de que há algo estranho se formando no ar. FHC que o diga.
"Antigamente as coisas eram piores, só que depois foram piorando" (Paulo Mendes Campos).

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