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CRÍTICA
Era Collor -segunda dentição
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV
Fernando Collor está de volta.
Reapareceu sábado passado no
"Programa Raul Gil", participando do "quadro do chapéu". Para
quem nunca viu, trata-se do seguinte: o convidado é posto diante de dez chapéus pendurados numa parede, com alguma coisa escrita na parte interna, que o público não vê; a brincadeira consiste
em saber para qual das personalidades/entidades ali gravadas ele
"tira o chapéu" e por quê.
O quadro, um dos mais esperados do programa, é um prato
cheio para o apetite de políticos
que, ajudados pela sabujice contumaz do animador, o utilizam
como vitrine e fazem a sua autopropaganda. Paulo Maluf, Lula e
José Serra são três dos figurões
que recentemente passaram por
lá, exercitando um populismo para lá de primitivo. Que pessoas
públicas supostamente sérias
(não é o caso do ex-prefeito) se
submetam, e de bom-grado, a esse espetáculo em que circo e política se sobrepõem e se confundem é obviamente um problema.
O comportamento do auditório
(por definição de manada), a música de suspense pontuando a revelação do conteúdo de cada chapéu e a performance do apresentador, ora grave ora palhaço, mas
invariavelmente regressivo, dão
ao conjunto um ar "afascistado".
Pois bem, nesse ambiente em
que impostura e entretenimento
se misturam, Collor fez um tremendo sucesso. O quadro registrou picos de audiência acima de
20 pontos no Ibope e a platéia
chegou a gritar em coro "Fernando! Fernando! Fernando!" no
momento em que o ex-presidente
surgiu no palco, punho cerrado
para cima, gesto (também "afascistado") que o caracterizou em
1989.
Raul Gil preparou bem a recepção do convidado, tratando de associá-lo a Jesus. "Quem nunca errou?", perguntava antes da aparição de Collor, completando a seguir: "Ninguém vai mudar o pensamento de ninguém. O que você
pensa é seu. O que você acredita é
seu. Ninguém deve meter-se no
seu voto. Ninguém deve meter-se
naquilo que você quer, porque
nós temos Jesus no coração. Ele,
que nos ensina e nos dá oportunidade de ser o que somos".
O discurso e o que veio a seguir
sugerem um programa encomendado (embora não se possa afirmá-lo) e, como Collor é virtual
candidato à prefeitura de São
Paulo, é mais do que legítima a
desconfiança sobre algum tipo de
relação, digamos, menos circunstancial e mais profunda entre o
bispo Edir Macedo e Collor.
Não há dúvida de que o neoprotestantismo ultrapragmático da
Igreja Universal, cuja força reside
na promessa de ascensão social
dos fiéis, encontra um forte aliado
na atitude messiânica e na retórica salvacionista de Collor.
O "eterno presidente", como a
ele se referia Raul Gil, estava mais
inseguro e menos impulsivo do
que nos tempos heróicos. Procurando mostrar maturidade, fruto
de "anos de sofrimento", ele parecia um clone pálido de si mesmo,
aspecto esse de replicante acentuado pelo novo sorriso (resultado de um recapeamento na dentição), mais do que nunca postiço.
Esse Collor "maduro" e recauchutado tirou o chapéu para o
"povo brasileiro", para o cantor
Reginaldo Rossi e para "os aposentados" (vítimas de FHC); negou-se a tirar o chapéu para Celso
Pitta, Itamar Franco e FHC, entre
outros. O "conteúdo" dos chapéus não deixa muitas dúvidas
sobre os propósitos do programa.
Collor teve oportunidade de dizer
que o atual presidente é fraco, um
ventríloquo da equipe econômica
e do FMI, e repetiu a versão de
que um golpe das elites o afastou
da "sua gente". É a volta do líder
das massas autoritário, isto é, do
populismo de direita.
Essa nova era Collor que se
anuncia não necessariamente está
vinculada à figura do ex-presidente. É, aliás, muito mais provável que o próximo Collor não seja
ele próprio, mas algum outro
"salvador da pátria" capaz de recolher o saldo da desagregação
social ora em curso -e para a
qual chamou atenção esta semana ninguém menos que o chefe da
Casa Militar, general Alberto Cardoso. Está longe de ser louco, portanto, quem hoje supõe que FHC
será sarneyzado até o final do
mandato (final?) e que um novo
messias da ordem contra o caos
será encampado pelas elites e vendido às massas (será Ciro Gomes?
ACM? Garotinho? algum outro?
Terá farda?).
Quem assistiu ao programa
"Você Decide" da semana passada terá percebido que também na
Globo há sinais de nova era Collor
no ar. O programa, ao lado do
"Linha Direta" o mais populista
da emissora -ambos também
"afascistados"- , tinha na penúltima quinta-feira o título de "Robin Hood Aposentado" (aqui novamente as vítimas de FHC).
Resumindo: um casal de idosos
(Gianfrancesco Guarnieri e Eloísa
Mafalda) que vive um cotidiano
de privações "rouba" um banco
por acaso, porque o caixa acreditou estar sendo vítima de um assalto inexistente e lhe entregou o
dinheiro. Os dois então doam o
que "receberam" para um orfanato à beira da falência e tomam
gosto pela boa ação ilícita.
Passam a roubar (brinquedos,
jóias, remédios) para distribuir
aos necessitados. A dona do orfanato descobre a origem das doações e vive um dilema: denunciar
ou não os velhinhos? "Você entregaria um casal tão simpático e
bem-intencionado às autoridades? Aqui, você decide", diz Celso
Freitas. Resultado: 90 mil ligações
a favor dos velhinhos, 38 mil contra. São "absolvidos".
Qual a moral da história? Não
será ela uma espécie de fenômeno
Hugo Chávez versão Jardim Botânico? Não estarão os simpáticos
velhinhos a nos dizer em linguagem global e cifrada as mesmas
coisas que o general Cardoso -a
tensão social está chegando ao limite? E quando ela chegar? Será
possível burlar a lei ou aposentar
a democracia para "salvar o país
necessitado"? Ou será que entre o
ressurgimento de Collor, a mensagem de Robin Hood e o aviso
do general não há relação alguma,
mas apenas simultaneidade? São
apenas perguntas e uma sensação
de que há algo estranho se formando no ar. FHC que o diga.
"Antigamente as coisas eram
piores, só que depois foram piorando" (Paulo Mendes Campos).
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