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CRÍTICA
Neonacionalismo de resultados
Fernando de Barros e Silva
COMO as coisas sempre podem ser piores, desta
vez fomos poupados de ter de torcer por "Orfeu"
na próxima festa do Oscar, o original. Tivemos
no entanto, pela primeira vez, o nosso próprio
Oscar, o enxerto, chamado de Grande Prêmio Cinema
Brasil. Nele, "Orfeu" levou a estatueta de melhor filme do
ano, ironicamente batizado Prêmio Glauber Rocha. "O
Auto da Compadecida", minissérie de Guel Arraes com o
insuperável Matheus Nachtergaele, levou o prêmio na
única categoria de TV, talvez porque se pareça pouco
com ela, de quem, aliás, "Orfeu" está
mais próximo. Mas vamos por partes.
O convescote do cinema foi patrocinado pelo Ministério da Cultura e ocorreu
no sábado da semana passada. Foi transmitido ao vivo por um sensacional pool
de emissoras educativas, as TVs ditas públicas, vista portanto por muito pouca
gente -a elite de sempre. A patuléia tinha mais o que fazer. Assistir à "Terra
Nostra", "Zorra Total", "A Praça É Nossa", porque a praça do povaréu é a TV,
popular e populista, não o cinema dito
nacional, cuja principal vertente está de
olho no Oscar, o deles, não a cópia.
Recolho alguns paradoxos dessa festividade feita para celebrar o renascimento do cinema brasileiro (ou esconder a
crise do natimorto). O primeiro deles é o
caráter imitativo, elitista e ornamental
do neonacionalismo do qual ele se fez
porta-voz. Como o sarampão do "Banespa é nosso", desencadeado por banqueiros nativos irrequietos, a turma que agora grita "o cinema é nosso" é, em
boa medida, a mesma que embarcou na canoa internacionalista do tucanato e se aproveitou dela para fazer da
cultura uma mercadoria competitiva e do Brasil um "estilo de vida que se consome" (a expressão tem dono).
Relembrando de passagem os melhores momentos da
última safra : "Tieta" é neofolclore baiano para exportação; "O Que É Isso, Companheiro?", farsa da ditadura,
vendida como relato histórico, para ser consumida por
incautos, aqui e lá fora; "Central do Brasil" (sem dúvida
mais digno), cinema novo privatizado; e "Orfeu", a estrela da vez, uma aquarela aguada da miséria, em que a favela aparece estilizada e integrada à paisagem natural.
O que esses filmes têm em comum? Duas coisas, pelo
menos. O fato de terem sido concebidos para disputar o
Oscar, não o do Weffort, mas o de Spielberg e cia., e o fato
de serem caudatários da televisão, da Globo em particular, da qual emprestam a estética, roubam a ética e seguem os propósitos. Levar o cinema a sério hoje seria começar discutindo por que, e como, a fome de ficção do
brasileiro foi atendida pela TV. Discutir, portanto, a sua
irrelevância objetiva, que se confunde com o fracasso do
país que o abortou em nome da telenovela. Tal debate poderia começar a torná-lo um pouco menos irrelevante.
Mas não, como o neonacionalismo de hoje é ornamental
(a perda da referência nacional, processo em curso, deixou de ser problema há muito e até ontem era vivida como libertação de um fardo), a discussão sobre o cinema
passa ao largo das questões de fundo da cultura e do país e
desembocam numa espécie de neomonetarismo.
Com a fantasia do real forte desfeita e, com ela, o anúncio do fim da dinheirama das empresas que se beneficiavam de isenção fiscal para financiar o nosso novíssimo
cinema, a choradeira voltou ao centro
do palco. Não, não irei generalizar
"casos isolados" (sic) de descalabro e
condenar gente honesta. O problema
aqui não é esse. Também não irei incomodar o ministro Weffort e seu ajudante-de-ordens, o secretário do Audiovisual cujo nome me escapa. A trajetória política e pública dessas duas
figuras me dispensa de elogiá-los. Mas
li na coluna de Mônica Bergamo que o
MinC pretende estender os benefícios
fiscais às TVs (à Globo, bem-entendido) para que produzam cinema. A
Globo, financiada pelo Estado, competindo com ela mesma? Estará assim
resolvido o problema? Talvez, por algum tempo, nos termos monetários a
que foi reduzido. Mas, se o problema é
dinheiro, há uma solução mais barata: no ano que vem,
muda-se o nome do convescote para Grande Prêmio Televisão Brasil. A Globo iria transmiti-lo e a festa seria enfim nacional e popular. No lugar do Prêmio Glauber Rocha, coloque-se logo o Prêmio Roberto Marinho. Pode-se
até inventar um prêmio de consolação para o cinema, como houve para a TV este ano. Chamem-no Prêmio Francisco Weffort, pelo conjunto da obra. Brincar de Oscar assim sairia mais barato, além de parecer mais honesto.
Uma nota extratelevisiva. Vive-se em São Paulo a temporada anual do trote universitário. Calouros são constrangidos por veteranos a pedir esmola, que chamam de
pedágio, no trânsito. Pintados como palhaços, em geral
sorridentes, pedem um troco sem ter qualquer noção de
que mimetizam indigentes atrás de migalhas pelas ruas. A
cena, atroz, é uma pantomima involuntária da humilhação nacional. São Carlitos às avessas. É assim que se inicia
a formação da pequena elite universitária do país.
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