São Paulo, Domingo, 21 de Março de 1999
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CRÍTICA

Gugu ou "Tropicália 3"

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor interino de Opinião

Muita gente manifestou espanto diante da aparição de Caetano Veloso no "Domingo Legal", de Gugu Liberato, na semana passada -e como atração nobre, exibida estrategicamente entre a star "pornolight" (Tiazinha) e os salmos edificantes do reverendo pop (Marcelo Rossi).
O conjunto da obra levado ao ar por Gugu, no entanto, é retrato concentrado e fiel do que se passa hoje com a cultura brasileira, e não deveria mais espantar quem acompanha com alguma regularidade sua dinâmica.
É bem provável que muito da reação negativa suscitada pela presença de Caetano naquele ambiente se deva a um sentimento de traição. Sobretudo em certa classe média, que cresceu tendo no compositor e no tropicalismo uma espécie de referência de cultura e civilização alternativas, cujo esquerdismo difuso sempre foi mais comportamental do que propriamente ideológico.
Caetano poderia objetar a esses pequenos-burgueses órfãos de seu ídolo que o problema não é seu, mas deles. Afinal, trata-se um programa popular e de massas como outro qualquer, e ele mesmo, Caetano, já fazia esse tipo de intervenção em pleno furacão tropicalista, quando frequentava a "Buzina do Chacrinha". Sim e não, e é esse o ponto.
Havia uma ambiguidade na atitude tropicalista, que hoje passa apenas por iconoclasta, quando, na verdade, também alinhava numa boa com o comercialismo da indústria cultural em nome de um modernismo requentado de tintas internacionalistas. Os adversários do tropicalismo eram menos a direita e o regime militar do que a esquerda ortodoxa, ingênua, careta e nacionalista, de Geraldo Vandré até, quem sabe, Chico Buarque.
Veja-se o que Caetano escreve sobre Chacrinha em seu "Verdade Tropical": "Agredindo com humor, mas sem humilhar verdadeiramente os calouros pobres e ignorantes que eventualmente ele interrompia com uma buzina (...), intrometendo-se nos números musicais de estrelas consagradas, atirando bacalhau na platéia, Chacrinha era um fenômeno de liberdade cênica -e de popularidade. Seu programa tinha enorme audiência e, como se fosse uma experiência dadá de massas, às vezes parecia perigoso por ser tão absurdo e tão energético" (...) Fiz aparições espalhafatosas no Chacrinha cantando "Tropicália" e "Superbacana", além de "Alegria, Alegria'".
Pois bem. A ambiguidade de Chacrinha se resolveu historicamente em Faustão, Ratinho e Gugu Liberato. São esses os herdeiros do homem engraçado que lançava bacalhau contra a cara dos pobres. E a ambiguidade tropicalista, por sua vez, se resolveu na sua incorporação dócil pela cultura hegemônica, a ponto de servir como referência para a pior música produzida em linha de montagem e colaborar para legitimar esse festival de caça-níquel selvagem que são os programas de auditório.
Caetano parece muito à vontade com esse destino e até o estimula. Não vê problemas em cantar no especial de Natal da Angélica, em dedicar canções para Sasha, em abrir a casa para "Caras", em animar o auditório do Gugu.
Ao mesmo tempo em que participa desse circuito degradado da indústria -e não mais popular, como ele supostamente queira-, é alçado à condição de intérprete maior da cultura nacional. Não é à toa que foi citado no discursos de posse e eleito símbolo cultural do país por FHC. Pelo que fizeram e desfizeram pelo Brasil, ambos se completam e se merecem.


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