São Paulo, domingo, 21 de maio de 2000


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CRÍTICA

A fabricação das bestas

Alcino Leite Neto

LIMA Duarte e Vera Holtz são agora e serão no futuro o único motivo para assistir "Uga Uga". Já nos capítulos iniciais, ele dominava a cena primitiva da novela, e ela o acompanhava palmo a palmo, maliciosa e matriarcal. São dois atores impressionantes, de enorme carisma, e estão ali para garantir um mínimo de solidez ao elenco da telenovela juvenil, em geral dominada por performáticos de academia e intimistas água-com-açúcar.
Duarte interpreta um milionário greco-carioca, empenhado em encontrar o neto perdido há 20 anos numa selva brasileira, após a morte de seus pais. Holtz faz a cunhada do milionário, agregada da casa e sua herdeira direta, interessadíssima, por isso, em fazer com que o neto não reapareça jamais. É impressionante que a Globo, com o poderoso staff de atores que tem, os destine hoje a programas tão pífios -o que certamente a história da dramaturgia no Brasil não perdoará à emissora.
Vera Holtz veio direto de "A Muralha" para "Uga Uga". A minissérie, apesar do aparato técnico, foi uma das mais grosseiras já feitas, mas parte do (ótimo) elenco permaneceu firme até o final, impedindo que tudo fosse para o brejo.
Holtz fazia em "A Muralha" a mulher de um bandeirante paulista, embrutecida pelo ressentimento ao patriarcado, que apesar disso ela defendia com unhas e dentes. Era uma ancestral da dona-de-casa brasileira, a contraface épica da sentimental mãe interiorana da peça "Pérola" (de Mauro Rasi), encarnada por ela de modo extraordinário.
Para Holtz, o papel na minissérie foi a possibilidade de fazer a "arqueologia" emocional do estilo provinciano e maternal que cunhou e tanto estima. Dado o esforço de reconstituição psicológica, após "A Muralha" emergiu uma nova intérprete, não do patético, mas do trágico -à maneira de uma Helene Weigel, atriz com a qual ela tem em comum mais do que a origem alemã. Uma próxima montagem de "Mãe Coragem" (peça de Brecht) não poderá prescindir de ter Vera Holz no papel-título, o que seria um fecho de ouro às mães interpretadas pela atriz.
Lima Duarte, por sua vez, andava nos últimos tempos ocupado com o cinema. Filmou com diretores brasileiros, portugueses e com um realizador argentino. Sua atuação em "Os Sermões", do português Manoel de Oliveira, um dos principais cineastas contemporâneos, deve aproximar o ator do reconhecimento internacional.
Em março, Aryclenes Venâncio Martins (o nome de batismo de Lima Duarte) fez 70 anos. Poderia se aposentar do regime semi-escravista das novelas e ficar apenas no cinema, que o tem tratado melhor, ultimamente. Mas não; voltou aos folhetins: é um animal televisivo insaciável. Sua história pessoal se confunde com a da TV brasileira, que ele ajudou a fundar.
Foi também o diretor da revolucionária novela "Beto Rockfeller", de Bráulio Pedroso, em 1968, como recorda a recém-lançada e desde já imprescindível "Enciclopédia do Cinema Brasileiro" (organizada por Fernão Ramos e Luis Felipe Miranda).
Em "Uga Uga", esse filho de uma artista de circo com certeza vai se esforçar para emplacar mais um personagem popular memorável, como Zeca Diabo e Sinhozinho Malta, utilizando para isso o esquema caracteriológico básico com que trabalha na TV: alguns tiques que se repetem ao infinito, o derramamento emocional intermitente, quase improvisado, e a dicção enfática e levemente distorcida, a fim de se distinguir da monótona prosódia das telenovelas (um cacarejar em uníssono).
Mas terá dificuldades redobradas. A começar pelo fato de que o grego Nikos é uma paródia da paródia da paródia -como tudo nessa novela- e não tem ponto de apoio no imaginário coletivo, o que é imprescindível para esse ator da era do nacional-popular.
Difícil mesmo será alguém se interessar pela própria "Uga Uga", novela que se quer inspirada nas histórias em quadrinhos, em sitcoms americanas e em filmes de aventura, mas na verdade mais próxima das piores pornochanchadas feitas no Brasil nos anos 70. Tanto pelos conteúdos inclassificáveis, quanto por sua estética ultrapassada, de planos mal-enquadrados e sem vigor, iluminação primária e edição aleijada. É uma contradição, ou melhor, uma tolice, a Globo fazer novela para a geração do videoclipe utilizando tanta velhacaria nas imagens.
Igualmente antiquado é o enredo, com noivinha que não quer casar, malandro que é flagrado com mulher alheia, moça abandonada por namorado e assim por diante. Tão logo os seios de Danielle Winits e as nádegas de Cláudio Heinrich forem melhor vestidos, o Ibope deve confirmar o erro que a emissora está cometendo ao considerar seu público teen como um bando de idiotas e fechar os olhos à tendência mundial de fazer programas juvenis, sim, mas com temáticas atuais e interessadas, mesmo que em registro cômico.
Não é comédia o que acontece em "Uga Uga": é uma série de cafajestadas de estúdio elaborada por cínicos sem apreço pelo espectador e sem responsabilidade social, para os quais o mundo está dividido entre homens ricos ou malandros, professores ou machões, mulheres loiras ou morenas, gostosas ou canhões, peruas ou pobrezinhas.
O desconforto que causa criticar produto tão rebaixado da indústria brasileira do entretenimento é maior ainda quando se tenta entender o motivo que levaria tanta gente a aceitar trabalho nessa fabriqueta de bestialidade. Só pode ser por dinheiro ou por burrice.


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