|
Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
A mídia, o frango e a "farra do Guga"
FERNANDO DE BARROS E SILVA
especial para a Folha
"O que aconteceu comigo?",
pergunta-se Gregor Samsa, o
protagonista da famosa novela
de Franz Kafka, ao acordar de
"sonhos intranquilos" e perceber que durante a noite havia se
"metamorfoseado num inseto
monstruoso".
"O que aconteceu comigo?",
deve ter-se perguntado Gustavo
Kuerten, ao acordar do sonho de
Roland Garros e ver-se metamorfoseado em "ídolo nacional". Ele é, a despeito de si mesmo, nosso novo Gregor Samsa.
No cerco da mídia ao herói da
vez, podemos ouvir a alma verde-amarela, que espuma e grita
eufórica na voz de algum desses
Galvões Buenos da vida:
- Guga, agora você é o "nosso
Guga", à custa de seu talento solitário exercitaremos de novo
nosso ufanismo, que andava órfão. Faremos com que o espalhafato da alma brazuca contamine
o seu jeito discreto, faremos com
que você perca tudo o que tem de
despojado e simples, seguiremos
os seus passos, vasculharemos
sua vida pessoal, invadiremos as
festas onde você gostaria de estar
só com os amigos, obrigaremos
você a ouvir aquela música do
Gonzaguinha de que tanto gosta
até não aguentar mais e ficar louco. Obrigado, Guga, obrigado!
Valeu, Guga, vaaaaaaaleu!!!
Nem é preciso estender à toa a
comparação entre "A Metamorfose", de Kafka, e a vida de Gustavo Kuerten. Basta dizer que a
primeira antecipa o totalitarismo
latente da sociedade massificada,
do qual a TV, na sua aparente
inocência, é hoje a maior expressão e veículo. Alguém desconfiado desses surtos cíclicos de ufanismo e um pouco atento à lógica interna da indústria da diversão há de concordar que o absurdo não está no eventual espanto
de alguém solitário, mas na naturalidade com que todos reagem ao absurdo -aí sim- desse processo de loucura coletiva.
Há, no entanto, quem discorde
dessa avaliação severa quando se
trata de apreciar o ufanismo brasileiro. O "oba oba" orquestrado em torno de Guga seria antes
uma explosão de energia vital,
uma festa carnavalesca, uma manifestação saudável de nacionalismo e de nacionalidade, a prova
cabal de que há, no "Brasil profundo", alguma coisa acima das
classes, algo como um "jeito de
corpo", uma ginga esperta e alegre, capaz de aplacar todos os
conflitos e acomodar as piores
disparidades sociais numa comunhão inesperada. Essa é,
aliás, a nossa tradição. Nossa auto-imagem é futebolística e carnavalesca, nunca histórica. Sempre odiamos o conflito.
(Entre parênteses: ao contrário
dos EUA, que procuraram exorcizar a escravidão, inclusive fisicamente, tentando arrasar os Estados em que ela existia, nós,
brasileiros, a assimilamos, reproduzimos seu horror "docemente", que sobrevive ainda hoje, por exemplo, na figura ambígua das empregadas domésticas.
Não é à toa que a expressão da
música negra nos EUA seja o lamento do blues e a da brasileira
seja a alegria marota do samba).
Voltando: É por tudo isso (e
outras coisinhas mais) que não
colam as tentativas de se identificar as tendências totalitárias da
mídia e da sociedade quando elas
se exprimem à brasileira. Afinal,
somos um povo tão espontâneo,
tão simpático, tão avesso à uniformidade e à ética protestante...
Não aprendemos, além disso,
desde a escola, que tudo por aqui
se "antropofagiza", que tudo
que nos chega de fora passa pelo
crivo criativo do nosso doce canibalismo? Pois canibalizamos
também o tênis, esse esporte de
elite, que acabamos de "futebolizar". Agora, ao lado do futebol
e do frango, o tênis também é um
produto de consumo popular.
Então viva o frango! Viva Guga! Viva o Brasil! E cada um que
trate de tirar sua lasca na "farra
do Guga" -antes que ela acabe.
Próximo Texto | Índice
|