São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997.



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CRÍTICA
A mídia, o frango e a "farra do Guga"

FERNANDO DE BARROS E SILVA
especial para a Folha

"O que aconteceu comigo?", pergunta-se Gregor Samsa, o protagonista da famosa novela de Franz Kafka, ao acordar de "sonhos intranquilos" e perceber que durante a noite havia se "metamorfoseado num inseto monstruoso".
"O que aconteceu comigo?", deve ter-se perguntado Gustavo Kuerten, ao acordar do sonho de Roland Garros e ver-se metamorfoseado em "ídolo nacional". Ele é, a despeito de si mesmo, nosso novo Gregor Samsa.
No cerco da mídia ao herói da vez, podemos ouvir a alma verde-amarela, que espuma e grita eufórica na voz de algum desses Galvões Buenos da vida:
- Guga, agora você é o "nosso Guga", à custa de seu talento solitário exercitaremos de novo nosso ufanismo, que andava órfão. Faremos com que o espalhafato da alma brazuca contamine o seu jeito discreto, faremos com que você perca tudo o que tem de despojado e simples, seguiremos os seus passos, vasculharemos sua vida pessoal, invadiremos as festas onde você gostaria de estar só com os amigos, obrigaremos você a ouvir aquela música do Gonzaguinha de que tanto gosta até não aguentar mais e ficar louco. Obrigado, Guga, obrigado! Valeu, Guga, vaaaaaaaleu!!!
Nem é preciso estender à toa a comparação entre "A Metamorfose", de Kafka, e a vida de Gustavo Kuerten. Basta dizer que a primeira antecipa o totalitarismo latente da sociedade massificada, do qual a TV, na sua aparente inocência, é hoje a maior expressão e veículo. Alguém desconfiado desses surtos cíclicos de ufanismo e um pouco atento à lógica interna da indústria da diversão há de concordar que o absurdo não está no eventual espanto de alguém solitário, mas na naturalidade com que todos reagem ao absurdo -aí sim- desse processo de loucura coletiva.
Há, no entanto, quem discorde dessa avaliação severa quando se trata de apreciar o ufanismo brasileiro. O "oba oba" orquestrado em torno de Guga seria antes uma explosão de energia vital, uma festa carnavalesca, uma manifestação saudável de nacionalismo e de nacionalidade, a prova cabal de que há, no "Brasil profundo", alguma coisa acima das classes, algo como um "jeito de corpo", uma ginga esperta e alegre, capaz de aplacar todos os conflitos e acomodar as piores disparidades sociais numa comunhão inesperada. Essa é, aliás, a nossa tradição. Nossa auto-imagem é futebolística e carnavalesca, nunca histórica. Sempre odiamos o conflito.
(Entre parênteses: ao contrário dos EUA, que procuraram exorcizar a escravidão, inclusive fisicamente, tentando arrasar os Estados em que ela existia, nós, brasileiros, a assimilamos, reproduzimos seu horror "docemente", que sobrevive ainda hoje, por exemplo, na figura ambígua das empregadas domésticas. Não é à toa que a expressão da música negra nos EUA seja o lamento do blues e a da brasileira seja a alegria marota do samba).
Voltando: É por tudo isso (e outras coisinhas mais) que não colam as tentativas de se identificar as tendências totalitárias da mídia e da sociedade quando elas se exprimem à brasileira. Afinal, somos um povo tão espontâneo, tão simpático, tão avesso à uniformidade e à ética protestante...
Não aprendemos, além disso, desde a escola, que tudo por aqui se "antropofagiza", que tudo que nos chega de fora passa pelo crivo criativo do nosso doce canibalismo? Pois canibalizamos também o tênis, esse esporte de elite, que acabamos de "futebolizar". Agora, ao lado do futebol e do frango, o tênis também é um produto de consumo popular.
Então viva o frango! Viva Guga! Viva o Brasil! E cada um que trate de tirar sua lasca na "farra do Guga" -antes que ela acabe.



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