São Paulo, domingo, 22 de setembro de 2002

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CRÍTICA

Por que fumam as crianças?

EUGÊNIO BUCCI

O HÁBITO de fumar está aumentando entre crianças e adolescentes. Dados do Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas) e da OMS (Organização Mundial de Saúde) atestam a tendência. No domingo passado, a "Revista da Folha" publicou uma reportagem sobre o assunto, com estatísticas indiscutíveis. Em 1987, 26% dos estudantes paulistanos entre 10 e 18 anos já tinham fumado. Em 1997, esse número crescera para 31%. A expectativa dos estudiosos é de que ele siga subindo. Meninas e meninos experimentam o tabaco cada vez mais cedo e se viciam rapidamente.
Há aí uma situação curiosa. Os jovens se convertem mais e mais ao tabagismo num período em que a propaganda de cigarros enfrenta uma onda de vigilância e de oposição sem precedentes. A mentalidade média do politicamente correto impõe a segregação dos fumantes, como se fossem os leprosos do novo milênio. Eles são obrigados a se confinar em salas especiais nos grandes edifícios comerciais. São depositados em mesas separadas nos restaurantes. Às vezes, são expelidos para as calçadas. É cada vez mais comum a gente observar, em frente às lojas, as vendedoras com ar anêmico fumando o seu do lado de fora. Na televisão, sobretudo na televisão, já não vemos as propagandas convencionais da chamada indústria tabagista. E, mesmo assim, os fumantes adolescentes se proliferam. Por quê?
A resposta virá de muitas frentes, por certo. Talvez passe pela eficácia da dependência da nicotina no organismo adolescente, talvez se deva a novos incrementos químicos desenvolvidos pela indústria para apressar a fixação do vício. Enfim, toda linha de investigação precisa ser levada em conta. Aos que acompanham criticamente a TV, contudo, um fator deve ser considerado com mais atenção: a força da publicidade do tabaco em fabricar imagens favoráveis para o gesto de fumar. A TV é o suporte privilegiado da cultura contemporânea, cultura sabidamente tiranizada pela imagem, e é aí, nessa cultura, que a publicidade opera. Opera fabricando valores, como o valor do hábito de fumar.
A propaganda de cigarro parece banida do vídeo. Mas ela ainda está lá, nos carros de corrida, nos festivais de jazz e, principalmente, ela ainda está lá como resíduo. Ela ainda age. Apresento, aqui, uma hipótese a ser levada em conta (entre todas as outras, claro). É possível que a publicidade do tabaco esteja agindo sobre o adolescente de hoje a partir dos resíduos que legou no imaginário da criança de ontem.
A propaganda de cigarro sempre se destinou às crianças. Não funciona tanto para adultos. O personagem da marca Camel, um sujeito de calça jeans e fisionomia dromedária, chegou a ser um dos tipos mais populares entre o público infantil americano. Ayrton Senna era um ídolo das crianças brasileiras fantasiado de maço de cigarro (Barrichello tenta fazer o mesmo, mas ainda padece de uma limitação, digamos, de ordem automobilística). A propaganda constrói no horizonte da criança um lugar positivo para o fumante. Futuro. Como eu já disse, ela planta na criança de hoje a imagem que será consumida anos depois pelo adolescente de amanhã.
Consumir não é mais comprar coisas corpóreas, mas imagens, signos. O sujeito não consome objetos físicos, mas atitudes, conceitos, marcas; ele consome para responder quem é. Por isso, o capitalismo especializou-se em fabricar, mais que mercadorias, as imagens das mercadorias. Consumir é mergulhar na imagem que se deseja (inconscientemente) para si. Exemplos? A imagem de quem é livre, adepto do "no limits" (você se lembra desse slogan?), ou a imagem de quem tem algo em comum com a moça vazia e bonita (lembra desse?), a de quem é vencedor (como Ayrton), a de quem não obedece aos mais velhos, sei lá.
Enquanto isso, as atrizes mais lindas fumam lindamente nas novelas. E fumar é uma delícia. O que complica ainda mais as coisas.


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