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CRÍTICA
As duas mortes de Dias Gomes
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
"Síntese de um povo",
"o mais popular de todos
os intelectuais que retrataram a alma do povo brasileiro no século 20", dizia o
"Jornal Nacional" na noite de terça-feira a respeito
de Dias Gomes. O jornal
"O Globo" do dia seguinte veio atrás: "Brasil perde
o dramaturgo do povo",
estampava a chamada na
primeira página. "O subversivo deixa a cena", dizia a chamada de capa do
caderno especial sobre o
escritor, alusão ao título de
sua autobiografia, "Apenas um Subversivo", lançada em 98.
Figura secundária e deslocada entre as tantas celebridades que foram prestar sua última homenagem
ao escritor, o compositor
Ivan Lins resumiu o enredo da semana: "era um
Ayrton Senna da dramaturgia brasileira". Fosse
irônica, o que obviamente
não caberia num momento de luto, a imagem seria
perfeita. A Globo transformou Dias Gomes no seu
Senna, símbolo de um país
imaginário reunido na TV.
Não é preciso desrespeitar ninguém para reconhecer que essa canonização
exprime melhor o que representa a Globo dentro da
cultura nacional do que
explica a obra de Dias Gomes. Na medida em que
uma e outra se imbricaram
num determinado momento, é preciso ver mais
de perto o que eram antes
para entender melhor o
que resultou desse casamento -ou, para ir logo
ao ponto, como a obra de
Dias Gomes de certa forma
morre no mesmo instante
em que é consagrada.
Embora tenha escrito
sua primeira peça em 35 e
embora já tivesse uma longa experiência de radioteatro, Dias Gomes desponta
como grande dramaturgo
apenas com "O Pagador
de Promessas", de 59. Sua
obra maior pertence à
mesma geração de "A
Moratória" (55), de Jorge
de Andrade, o "Auto da
Compadecida" (56), de
Ariano Suassuna, "Eles
Não Usam Black-Tie"
(58), de Gianfrancesco
Guarnieri, "Chapetuba
Futebol Clube" (59), de
Vianinha, e "Revolução
na América do Sul" (60),
de Augusto Boal.
Detalhes à parte, são todos militantes de esquerda, todos profundamente
nacionalistas e estão todos
em busca de um teatro ao
mesmo tempo popular e
socialmente engajado, capaz de expor as mazelas do
país e ser ao mesmo tempo
um veículo de sua superação. Em uma fórmula, integram o nacional-popular, expressão cultural do
desenvolvimentismo, da
euforia dos anos JK, da
criação de Brasília, do país
que parecia viável.
O golpe de 64 cortou o
elo democrático dessa promessa de modernização, e
a experiência dos CPCs (os
Centros Populares de Cultura) nos anos 60 foi a tentativa desesperada de reatá-lo dentro de um projeto
pedagógico-revolucionário. Sabe-se no que isso
deu: delírio esquerdista e
guerrilha de um lado, mais
censura e tortura de outro.
Este é o país em que a
Globo nasceu, favorecida
pelo regime militar e por
ele incumbida de integrar
virtualmente o território
nacional (este mesmo que
agora, nunca integrado de
fato, vai acabando de se
desmanchar em mercados
emergentes e imensos bolsões de miséria por obra
do reinado de FHC).
Dias Gomes surge para a
TV no início dos anos 70, e
seu teatro nacional-popular, abortado pela ditadura, será reciclado pela sua
cria mais genial, a Globo,
na forma da telenovela,
ajudando a consolidar e legitimar aquela que é até
hoje a forma de entretenimento de massa hegemônica no país.
Para se ter uma idéia do
que eram as telenovelas
antes de Dias Gomes e de
Janete Clair basta ver o que
são hoje várias novelas exibidas pelo SBT: dramalhões recheados de canastrões latinos, completamente distantes e desconectadas de tudo o que se
refira ao Brasil.
Tampouco pode-se dizer
no entanto que o país das
novelas de Dias Gomes refletia aquele que ia surgindo sob o tacão da modernização autoritária. Não é
à toa que de suas novelas
mais célebres, "O Bem
Amado" e "Roque Santeiro", tenham ficado na
memória coletiva uma galeria de personagens, tipos
exóticos de um país pendurado no tempo, que a
modernização tornou obsoleto sem no entanto eliminar, pelo contrário. Como escreveu Otavio Frias
Filho, "a industrialização
foi completada sob um regime antipopular, a integração entre os dois brasis
não aconteceu, a modernização agravou antigas sequelas, é possível ser desenvolvido e subdesenvolvido ao mesmo tempo".
O Brasil passou da incultura da roça para a ignorância eletrônica sem conhecer a civilização. Ou,
para falar como Antonio
Candido, passou "diretamente da fase folclórica
para essa espécie de folclore urbano que é a cultura
massificada". O que era,
portanto, o problema e o
desafio do nacional-popular nos anos 50, aquilo que
ele se propunha a revelar e
superar historicamente, se
transfigurou em solução e
objeto de entretenimento
doméstico. O CPC foi posto à serviço do mercado
pela Globo nos anos 70.
Falar portanto de uma
teledramaturgia com
consciência social e crítica
política, como acreditava
fazer Dias Gomes e como
hoje repetem seus admiradores, não é apenas um clichê, mas um disparate. Ou
devemos imaginar donas-de-casa pegando em
baionetas e pais de família
pregando a revolução durante o jantar? Podemos ao
menos imaginar que alguém saia de uma novela
mais consciente ou preocupado com os problemas
do país? Tolice pura. Novelas, sejam de quem for,
servem apenas para distrair, para passar o tempo.
Satisfazem toda a fome de
ficção e toda a sede de
transformação desse povo
pacato, alegre e afetivo,
simbolicamente reunido
em torno da tela da TV.
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