São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

As duas mortes de Dias Gomes

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

"Síntese de um povo", "o mais popular de todos os intelectuais que retrataram a alma do povo brasileiro no século 20", dizia o "Jornal Nacional" na noite de terça-feira a respeito de Dias Gomes. O jornal "O Globo" do dia seguinte veio atrás: "Brasil perde o dramaturgo do povo", estampava a chamada na primeira página. "O subversivo deixa a cena", dizia a chamada de capa do caderno especial sobre o escritor, alusão ao título de sua autobiografia, "Apenas um Subversivo", lançada em 98.
Figura secundária e deslocada entre as tantas celebridades que foram prestar sua última homenagem ao escritor, o compositor Ivan Lins resumiu o enredo da semana: "era um Ayrton Senna da dramaturgia brasileira". Fosse irônica, o que obviamente não caberia num momento de luto, a imagem seria perfeita. A Globo transformou Dias Gomes no seu Senna, símbolo de um país imaginário reunido na TV.
Não é preciso desrespeitar ninguém para reconhecer que essa canonização exprime melhor o que representa a Globo dentro da cultura nacional do que explica a obra de Dias Gomes. Na medida em que uma e outra se imbricaram num determinado momento, é preciso ver mais de perto o que eram antes para entender melhor o que resultou desse casamento -ou, para ir logo ao ponto, como a obra de Dias Gomes de certa forma morre no mesmo instante em que é consagrada.
Embora tenha escrito sua primeira peça em 35 e embora já tivesse uma longa experiência de radioteatro, Dias Gomes desponta como grande dramaturgo apenas com "O Pagador de Promessas", de 59. Sua obra maior pertence à mesma geração de "A Moratória" (55), de Jorge de Andrade, o "Auto da Compadecida" (56), de Ariano Suassuna, "Eles Não Usam Black-Tie" (58), de Gianfrancesco Guarnieri, "Chapetuba Futebol Clube" (59), de Vianinha, e "Revolução na América do Sul" (60), de Augusto Boal.
Detalhes à parte, são todos militantes de esquerda, todos profundamente nacionalistas e estão todos em busca de um teatro ao mesmo tempo popular e socialmente engajado, capaz de expor as mazelas do país e ser ao mesmo tempo um veículo de sua superação. Em uma fórmula, integram o nacional-popular, expressão cultural do desenvolvimentismo, da euforia dos anos JK, da criação de Brasília, do país que parecia viável.
O golpe de 64 cortou o elo democrático dessa promessa de modernização, e a experiência dos CPCs (os Centros Populares de Cultura) nos anos 60 foi a tentativa desesperada de reatá-lo dentro de um projeto pedagógico-revolucionário. Sabe-se no que isso deu: delírio esquerdista e guerrilha de um lado, mais censura e tortura de outro.
Este é o país em que a Globo nasceu, favorecida pelo regime militar e por ele incumbida de integrar virtualmente o território nacional (este mesmo que agora, nunca integrado de fato, vai acabando de se desmanchar em mercados emergentes e imensos bolsões de miséria por obra do reinado de FHC).
Dias Gomes surge para a TV no início dos anos 70, e seu teatro nacional-popular, abortado pela ditadura, será reciclado pela sua cria mais genial, a Globo, na forma da telenovela, ajudando a consolidar e legitimar aquela que é até hoje a forma de entretenimento de massa hegemônica no país.
Para se ter uma idéia do que eram as telenovelas antes de Dias Gomes e de Janete Clair basta ver o que são hoje várias novelas exibidas pelo SBT: dramalhões recheados de canastrões latinos, completamente distantes e desconectadas de tudo o que se refira ao Brasil.
Tampouco pode-se dizer no entanto que o país das novelas de Dias Gomes refletia aquele que ia surgindo sob o tacão da modernização autoritária. Não é à toa que de suas novelas mais célebres, "O Bem Amado" e "Roque Santeiro", tenham ficado na memória coletiva uma galeria de personagens, tipos exóticos de um país pendurado no tempo, que a modernização tornou obsoleto sem no entanto eliminar, pelo contrário. Como escreveu Otavio Frias Filho, "a industrialização foi completada sob um regime antipopular, a integração entre os dois brasis não aconteceu, a modernização agravou antigas sequelas, é possível ser desenvolvido e subdesenvolvido ao mesmo tempo".
O Brasil passou da incultura da roça para a ignorância eletrônica sem conhecer a civilização. Ou, para falar como Antonio Candido, passou "diretamente da fase folclórica para essa espécie de folclore urbano que é a cultura massificada". O que era, portanto, o problema e o desafio do nacional-popular nos anos 50, aquilo que ele se propunha a revelar e superar historicamente, se transfigurou em solução e objeto de entretenimento doméstico. O CPC foi posto à serviço do mercado pela Globo nos anos 70.
Falar portanto de uma teledramaturgia com consciência social e crítica política, como acreditava fazer Dias Gomes e como hoje repetem seus admiradores, não é apenas um clichê, mas um disparate. Ou devemos imaginar donas-de-casa pegando em baionetas e pais de família pregando a revolução durante o jantar? Podemos ao menos imaginar que alguém saia de uma novela mais consciente ou preocupado com os problemas do país? Tolice pura. Novelas, sejam de quem for, servem apenas para distrair, para passar o tempo. Satisfazem toda a fome de ficção e toda a sede de transformação desse povo pacato, alegre e afetivo, simbolicamente reunido em torno da tela da TV.


Próximo Texto: Filmes de hoje
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.