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Em 98, deu Jamanta na cabeça
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
Quase todos conhecem
o personagem de Cacá
Carvalho em "Torre de
Babel". Mas não é do
simpático Jamanta que
vai tratar nesses dias de
festas e amenidades esta
coluna, de resto bem
pouco simpática com a
TV ao longo do ano que
finda.
A figura de Jamanta
serve apenas de mote, ou
metáfora, para um sucinto balanço do que foi a
TV em 98. Jamanta, como se sabe, é limítrofe,
ronda a demência, trafega no mais das vezes pela
pista da insensatez.
Isso o faz aos olhos de
todos um ser inimputável, de quem não se pode
cobrar ou exigir nada. É
café-com-leite, como se
diz. E é dessa inimputabilidade que Jamanta extrai
suas vantagens. Ele é, no
fundo, um espertalhão,
um tipo bem brasileiro,
sem prejuízo de ser ao
mesmo tempo aparvalhado.
A graça ou o encanto
do personagem está exatamente na sua inspiração, por assim dizer,
"macunaímica". Pois a
TV em 98 foi como Jamanta: quase demente e
muito esperta, aproveitando-se do fato de que é,
como sempre foi, inimputável, apesar de todos
os esforços retóricos, alguns bem-intencionados, de lhe controlar as
barbaridades em nome
de uma suposta ética ou
responsabilidade social.
Não foi, para falar em
termos menos metafóricos, um ano de novidades ou feitos notáveis na
TV. 98 significou antes a
rotinização de um certo
padrão de programação
que vinha se insinuando
há anos e que explodiu
em 97 -ano que começou extasiado com o
tchan de Carla Perez,
consagrou Ratinho e terminou com o anúncio da
gravidez-espetáculo de
Xuxa no "Domingão do
Faustão".
O ano de 98, se muito,
consolidou e colheu os
frutos da estação anterior. Caso talvez mais
sintomático e relevante
dessa tendência foi a lenta, às vezes titubeante,
mas inequívoca adaptação da Globo ao novo padrão, gestado de início à
sua margem e à sua revelia.
No jornalismo, por
exemplo, o horário nobre foi dedicado às variedades, e o "Jornal Nacional" foi transformado
numa versão mitigada do
show da vida. Programas
como o de Regina Casé
adaptaram-se à mais estrita lógica da concorrência, e os artistas globais,
trunfo de uma emissora
muito mais rica que as
outras, passaram a ocupar todas as brechas da
programação, dos sorteios aos eventos esportivos, passando, mais uma
vez, pelo jornalismo.
Os astros do pagode e
do neo-sertanejo, ícones
da cultura popular reciclada segundo critérios e
exigências da indústria
cultural, deixaram de ser
tratados com o desprezo
que a elite habitualmente
dispensa a tudo que surge do andar de baixo da
sociedade para serem erigidos à condição de representantes maiores da
cultura nacional. Essa legitimação do neobrega
para consumo das elites
também foi em grande
medida obra da Globo.
É curioso que a emissora esteja agora flertando
com aquela coisa que
atende por Rodolfo, o astro do Gugu, o que só faz
acentuar a deterioração
do quadro esboçado.
Não se trata, como tem
sido dito com certa frequência, de simplesmente condenar o "baixo nível" que vem tomando
conta da nossa TV, como
se ela pudesse, por decreto ou passe de mágica, ser
muito diferente do que é.
Seria melhor entender
antes em que medida esse
"baixo nível" exprime a
adesão em escala inédita
de um país pobre e de
formação inacabada aos
padrões de entretenimento norte-americanos, onde a cultura vale o
quanto rende.
Forçando um pouco a
nota, talvez seja possível
fazer um paralelo entre o
Brasil do Real e essa nova
TV. Há um certo ar de família entre a aposta econômica dos que nos governam hoje, que assumiram como desejável a
redução do país a um
"mercado emergente",
e a cultura que emergiu
da TV, cuja aposta é basicamente econômica.
Os novos-ricos da TV
são como Jamanta: dementes e espertos. E
inimputáveis, porque afinal este continua sendo o
velho Brasil.
E-mail: fbsi@uol.com.br
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