São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

Próximo Texto | Índice

Em 98, deu Jamanta na cabeça

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Quase todos conhecem o personagem de Cacá Carvalho em "Torre de Babel". Mas não é do simpático Jamanta que vai tratar nesses dias de festas e amenidades esta coluna, de resto bem pouco simpática com a TV ao longo do ano que finda.
A figura de Jamanta serve apenas de mote, ou metáfora, para um sucinto balanço do que foi a TV em 98. Jamanta, como se sabe, é limítrofe, ronda a demência, trafega no mais das vezes pela pista da insensatez.
Isso o faz aos olhos de todos um ser inimputável, de quem não se pode cobrar ou exigir nada. É café-com-leite, como se diz. E é dessa inimputabilidade que Jamanta extrai suas vantagens. Ele é, no fundo, um espertalhão, um tipo bem brasileiro, sem prejuízo de ser ao mesmo tempo aparvalhado.
A graça ou o encanto do personagem está exatamente na sua inspiração, por assim dizer, "macunaímica". Pois a TV em 98 foi como Jamanta: quase demente e muito esperta, aproveitando-se do fato de que é, como sempre foi, inimputável, apesar de todos os esforços retóricos, alguns bem-intencionados, de lhe controlar as barbaridades em nome de uma suposta ética ou responsabilidade social.
Não foi, para falar em termos menos metafóricos, um ano de novidades ou feitos notáveis na TV. 98 significou antes a rotinização de um certo padrão de programação que vinha se insinuando há anos e que explodiu em 97 -ano que começou extasiado com o tchan de Carla Perez, consagrou Ratinho e terminou com o anúncio da gravidez-espetáculo de Xuxa no "Domingão do Faustão".
O ano de 98, se muito, consolidou e colheu os frutos da estação anterior. Caso talvez mais sintomático e relevante dessa tendência foi a lenta, às vezes titubeante, mas inequívoca adaptação da Globo ao novo padrão, gestado de início à sua margem e à sua revelia.
No jornalismo, por exemplo, o horário nobre foi dedicado às variedades, e o "Jornal Nacional" foi transformado numa versão mitigada do show da vida. Programas como o de Regina Casé adaptaram-se à mais estrita lógica da concorrência, e os artistas globais, trunfo de uma emissora muito mais rica que as outras, passaram a ocupar todas as brechas da programação, dos sorteios aos eventos esportivos, passando, mais uma vez, pelo jornalismo.
Os astros do pagode e do neo-sertanejo, ícones da cultura popular reciclada segundo critérios e exigências da indústria cultural, deixaram de ser tratados com o desprezo que a elite habitualmente dispensa a tudo que surge do andar de baixo da sociedade para serem erigidos à condição de representantes maiores da cultura nacional. Essa legitimação do neobrega para consumo das elites também foi em grande medida obra da Globo.
É curioso que a emissora esteja agora flertando com aquela coisa que atende por Rodolfo, o astro do Gugu, o que só faz acentuar a deterioração do quadro esboçado.
Não se trata, como tem sido dito com certa frequência, de simplesmente condenar o "baixo nível" que vem tomando conta da nossa TV, como se ela pudesse, por decreto ou passe de mágica, ser muito diferente do que é.
Seria melhor entender antes em que medida esse "baixo nível" exprime a adesão em escala inédita de um país pobre e de formação inacabada aos padrões de entretenimento norte-americanos, onde a cultura vale o quanto rende.
Forçando um pouco a nota, talvez seja possível fazer um paralelo entre o Brasil do Real e essa nova TV. Há um certo ar de família entre a aposta econômica dos que nos governam hoje, que assumiram como desejável a redução do país a um "mercado emergente", e a cultura que emergiu da TV, cuja aposta é basicamente econômica.
Os novos-ricos da TV são como Jamanta: dementes e espertos. E inimputáveis, porque afinal este continua sendo o velho Brasil.


E-mail: fbsi@uol.com.br



Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.