São Paulo, domingo, 27 de dezembro de 1998

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ANÁLISE
Opções, vontades e pesquisas

NELSON HOINEFF
especial para a Folha

Os institutos de pesquisa prometem para o início de 99 os primeiros números sobre o desempenho da TV paga e, com eles, uma grande polêmica. O projeto engloba períodos mais longos do que o minuto a minuto, mas ainda assim usa métodos de medição quantitativa.
Seria o mesmo que medir a quantidade de chuva e inferir que, quanto mais, melhor para a agricultura - não importa onde a ela caia, em que época e em que tipo de plantação.
Em primeiro lugar porque pesquisas de audiência aferem reações, o que nada tem a ver com vontades. Mas essas reações, que mais tarde acabarão por estimular as vontades, ficam limitadas pelo próprio conjunto das ofertas televisivas. O espectador deixa de perceber que o seu leque de possibilidades transcende em muito o repertório em relação ao qual sua resposta está sendo medida.
A TV paga nasceu justamente para abrir esse leque, estender o conjunto de possibilidades do produtor e combater o modelo massificante implantado pelas grandes redes abertas.
No mês passado, pela primeira vez, o conjunto de canais a cabo suplantou em audiência a soma das redes abertas nos EUA. Na participação anual, a diferença caiu 18 pontos: as quatro grandes redes abertas agora tem 55,3%, contra 38,5% do conjunto dos 450 canais a cabo.
Esses canais são distribuídos por 3.000 operadores. A escolha de um desses operadores passa pelo equilíbrio do cardápio de canais que é oferecido ao consumidor. O desempenho de cada canal, então, não pode ser medido pelo número de espectadores que estão ligados a ele, mas pela sua importância para a decisão do público na escolha do operador.
Há bons canais feitos ou montados no Brasil. Multishow, Superstation, Eurochannel são exemplos disso. Na maioria das vezes, no entanto, o line up de operadores brasileiros tem promovido a sistemática incorporação de linguagens, modelos e valores da TV aberta. Abandonam a possibilidade de segmentar (que aponta para o novo) para fragmentar o que já é conhecido, seguro.
Há sete anos, Russell Neuman já apontava para a questão: "Ao multiplicarmos o número de canais por dez devemos entender se vamos multiplicar por dez as áreas de interesse hoje existentes ou se, ao invés disso, vamos fragmentar o seu público uma dezena de vezes" ("The Future of Mass Audience", Cambridge, 91).
Nos EUA, o line up responde a essa questão com centenas de canais voltados para uma gama variada de interesses que vão no sentido oposto à necessidade de generalização promovida pelas emissoras abertas.
Uma pesquisa quantitativa tiraria tudo isso do ar. Induziria o espectador a acreditar que um canal é tão melhor quanto mais ele se pareça com uma grande rede aberta - porque bom mesmo é o que a gente já conhece.
O problema é que todos os estudos modernos apontam em outra direção. As teorias contemporâneas do espectador reconhecem a existência de cabeças pensantes em frente ao aparelho. "Os consumidores passivos são espantalhos que caíram em desuso", lembra Daniel Dayan ("En Busca del Publico", Gedisa, Barcelona, 1997). John Corner mostra que a agenda de pesquisas sobre o poder dos meios "não está mais dominada pelo tema da oferta, mas pela proliferação de trabalhos relativos à demanda". ("Meaning, Genre and Context", Edward Arnold, Londres, 1991).
E, no entanto, pesquisas de audiência simplesmente não consideram a demanda. Podem concluir que os telespectadores preferiram ver o Ratinho a qualquer das outras opções disponíveis naquele momento - mas de forma alguma indicam que o Ratinho seja o seu ideal de consumo televisivo.
A crença de que os institutos possam interpretar, não a opção, mas o desejo do telespectador brasileiro, é responsável não apenas pela baixa qualidade média da televisão, mas até pela crise econômica que todas as emissoras abertas dizem estar enfrentando.
A TV brasileira tem falhado na compreensão da real demanda do seu público. Às vezes não percebemos isso e acreditamos que os institutos estão interpretando a nossa vontade. Não nos espantamos com o fato de 70 milhões de brasileiros assistirem ao mesmo tempo à mesma novela -já nos acostumamos com essa distorção. O mercado sugere o contrário: a receita publicitária da TV paga aumentou 22,3% este ano nos EUA, contra 3,3% da TV aberta.
Este é, então, o momento de nos espantarmos com a idéia de que uma programação segmentada seja aferida por métodos quantitativos. Ou fazemos isso agora, ou daqui a dois anos vamos amargar uma TV paga cada vez mais parecida com a TV aberta, individualmente mais pobre e fragmentada em 50 clones.


NELSON HOINEFF é jornalista, diretor e produtor de TV, autor de "TV em Expansão" (ed. Record) e "A Nova Televisão" (ed. Relume-Dumará).



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