São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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CRÍTICA

A função dos microfones

EUGÊNIO BUCCI

O DE ADRIANE Galisteu é branco. E volumoso. Talvez seja branco por ser volumoso. Ou talvez pareça volumoso por ser branco, o que não importa nada. É o de Adriane Galisteu. O de Raul Gil tem elementos dourados. Seria ouro? Seria falso? Não faz diferença: ele reluz sob os holofotes feito uma jóia da coroa, um cetro real. O de Jô Soares é a miniatura de um bem grandão, daqueles de mesa, de estúdio de rádio. Assim, mínimo, infinitesimal, fixado sobre uma blusa cacharrel vermelha, bem na altura do coração, exerce a devida função humorística. Sua majestade o microfone alcança uma centralidade corporal e cósmica jamais sonhada. Ah, sim, é verdade que o de Sílvio Santos, que em outros tempos parecia uma torre de comando de aeroporto alemão, é hoje mais singelo e, também, sugere uma centralidade e tanto. Como um aviãozinho na vertical, ele parece pronto a decolar da gravata do animador com um poder de sedução quase mágico, provavelmente similar àquele do projeto de Brasília idealizado por Lúcio Costa, que, sabe-se lá por que transcendências arquitetônicas, fisgou de cara a paixão de J.K.. O de Sílvio Santos é federal.
As câmeras que nos perdoem, mas o microfone é fundamental. É ele quem confere o dom da palavra. Pelo dom da palavra, indica quem é que manda no terreiro. Em televisão, o direito a voz é muito mais importante que o direito de voto. Direito de voto qualquer uma das "colegas de trabalho" de Sílvio Santos tem. Qualquer uma grita, bate palmas, canta junto, vaia o Pedro de Lara. Qualquer uma participa das grandes decisões sobre quem é que vai para o trono ou não vai. Mas tudo isso é perfumaria. O poder pra valer é de quem manda no microfone. Eu sei que a alusão é fácil e óbvia, mas ela é inevitável: o microfone, em televisão, é o falo.
O repórter de TV nunca deixa que o entrevistado pegue no dele. É só dele. É o que lhe dá o controle da situação. Basta um movimento de braço, e ele cassa a palavra à sua fonte, ou seja, cassa-lhe a existência. A questão, entretanto, é que esse cassar a existência só ganha sentido porque é visível: o telespectador testemunha com os olhos a ida e a vinda do poder, à medida que assiste às idas e vindas do falo, digo, do microfone do repórter. São microfones curiosos esses, os dos telejornais. Eles são do repórter mas, ao mesmo tempo, são da emissora a que pertence o repórter. Assim, o do repórter leva, como tatuagem, como circuncisão, a marca da emissora. É a sua identificação de microfone, digo, de falo. Microfones, sendo falos, trazem inscrito em si o nome do poder que os institui. Conforme a marca que se crava no microfone, mais ou menos portas ele abre. Mais ou menos imperativa é a ordem que ele emite ao entrevistado: "Agora você fala!"
Eu sei que o trocadilho é fácil e óbvio, mas é irresistível, e eu irei decliná-lo. Quem manda no microfone, diante das câmeras, parece desafiar permanentemente o seu interlocutor: "Você não fala como eu falo. E só fala com o meu falo".
Penso então que o falo de Adriane Galisteu é branco e volumoso. Penso e me divirto com tamanha baixeza. Há, no programa de Adriane, os filhotes desse grande falo branco que é o pai de todos. São filhotes todos pretinhos e, a esses, os convidados têm o direito de empunhar. Só falam, contudo, segundo autoriza a fala do falo da apresentadora. Os microfones filhotes, os pequenos falos submissos, estão sempre sujeitos ao grande falo castrador. Jô Soares também dispõe de microfones para as visitas. Antigamente, havia um que o entrevistado acabava, mais cedo ou mais tarde, estapeando involuntariamente. Ou seria um ato falho? O sujeito gesticulava para lá, para cá, até que esmurrava o falo filhote. Hoje, não mais. Acho que mudaram a posição do bicho.
Falos, microfones, atos falhos. A televisão é um labirinto circular.



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