São Paulo, Domingo, 28 de Novembro de 1999


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CRÍTICA

Mídia: Modos de usar

FERNANDO DE BARROS E SILVA

A MAIS recente piada saída das hostes malufistas é de que a apresentadora Hebe Camargo é possível candidata do PPB à prefeitura de São Paulo no ano que vem. A notícia foi publicada sem muito destaque, há pouco mais de 15 dias, na Folha. Dizia: "O ex-prefeito Paulo Maluf incluiu ontem a apresentadora Hebe Camargo em uma lista de possíveis candidatos de seu partido à sucessão do prefeito Celso Pitta, no próximo ano. Maluf se referiu à apresentadora como "uma mulher maravilhosa, excepcional e corajosa"".
Hebe, como se sabe, é malufista de carteirinha e de longa data. Nunca escondeu isso. Em abril, por exemplo, quando a bandalheira municipal envolvendo a camarilha de Pitta (e de Maluf) ocupava lugar de destaque na mídia, Hebe saiu com a seguinte declaração: "Celso Pitta não tem competência para administrar São Paulo". Disse a seguir que estava "arrependida" de ter votado no prefeito e isentou Maluf de ter qualquer participação com a "máfia da propina". "Já quanto ao prefeito... não gosto de falar de traidores", concluiu.
Depois de alguns meses no centro da mídia, a máfia da propina praticamente evaporou do noticiário. Um ou outro barnabé da administração municipal foi preso, alguns vereadores corruptos foram indiciados, mas o grosso da investigação ficou por ser feito. A CPI foi abortada numa manobra da bancada governista, a ameaça de impeachment que pairou sobre Pitta foi afastada por um acordão que ajeitou temporiamente interesses de velhos e novos malufistas, divididos entre o antigo e o atual chefe, de preferência fiéis aos dois.
Pois bem. É evidente que a candidatura Hebe é um factóide lançado por Maluf, que pretende testar seu impacto na mídia. Se colar, muito bem, avalia-se sua possibilidade mais seriamente; se não comover as massas, paciência, esquece-se a apresentadora, dando-lhe outra tarefa, e parte-se para alguma outra estratégia de sobrevivência política.
A campanha à prefeitura paulistana promete, de qualquer forma, transformar-se numa caricatura do circo democrático brasileiro. Atrações não lhe faltam. Além da própria Hebe, Fernando Collor aguarda decisão da Justiça para concorrer ao cargo. Já é candidato assumido, comporta-se com tal, e a receptividade que teve recentemente ao exercitar seu populismo no programa de auditório de Raul Gil, que registrou altos índices de audiência, certamente reforçou seu delírio bonapartista. É inevitável que faça comparações com a eleição de 89 à Presidência. Era um obscuro político alagoano até 88, quando a mídia começou a identificá-lo como o "caçador de marajás" (a famosa capa de "Veja" é de março daquele ano). Um ano depois, em março de 89, Collor tinha apenas 9% das intenções de voto, segundo o Ibope; em maio, saltara para 32%.
Junto a assessores seus, Collor vem ridicularizando, não sem manifestar uma grande dose de inveja, a baixa audiência do programa de debates apresentado aos sábados na Rede Bandeirantes por Marta Suplicy, candidata do PT à Prefeitura, até agora líder nas pesquisas de opinião. "Ah, se eu tivesse aquele espaço todas as semanas", tem repetido aos mais próximos, escarnecendo do desempenho da virtual adversária. Marta Suplicy paga assim o preço de ter aceitado participar do circo. Inventou para si um programa em que agia, ou fingia agir, como se não fosse candidata, mas cujo propósito é expô-la na mídia, dar-lhe visibilidade eleitoral.
A pré-temporada eleitoral paulistana dá muito o que pensar. A importância que a política tem hoje na mídia parece ser inversamente proporcional à importância que os políticos dedicam à mesma mídia. A política perdeu espaço histórico, deixou de interessar as pessoas, não mobiliza mais a sociedade. Na TV, o eixo dos noticiários de grande audiência deslocou-se para os "faits divers", para os dramas sociais, as pequenas curiosidades da vida cotidiana, as tragédias naturais, tratados preferencialmente com boa dose de sentimentalismo e senso de espetáculo. Os noticiários dedicados à elite, por sua vez, deslocaram sua ênfase da política para a economia. O que interessa são as privatizações, as fusões empresariais, o câmbio etc. A política vem a reboque e, no geral, se confunde com a "agenda modernizadora" do governo, incluída aí a ladainha das reformas.
Nesse ambiente despolitizado de cima a baixo e onde as aspirações coletivas foram pulverizadas nos interesses privados de cada um, a TV tornou-se o pólo catalisador da política reduzida a um ramo do marketing. Mesmo Marta Suplicy, tão diferente de Collor e de Hebe, joga esse jogo.
Para quem quiser conhecer melhor e a fundo como se dão as relações da política com a mídia, entre um poder e outro, é muito útil ler "Notícias do Planalto - A Imprensa e Fernando Collor", livro do jornalista Mario Sergio Conti, ex-diretor de redação de "Veja", recém-lançado pela Companhia das Letras. É uma obra excepcional, um marco na história do jornalismo brasileiro, que vale com folga as suas quase 700 páginas. Mais do que uma grande reportagem sobre o período em questão, da ascensão à queda de Collor, é uma radiografia minuciosa e de longo alcance do patronato brasileiro o que o livro traz. Poderia se chamar, parafraseando a obra clássica de Raimundo Faoro, "Os Donos do Poder". Nele estão expostas como surgem as decisões, como se fazem e desfazem alianças, como agem grupos de interesse dentro e fora da mídia, enfim, como se comporta a elite nativa. O retrato, feito com o mínimo de adjetivos e o máximo de informações, é avassalador, embora à primeira vista pareça até simpático ao baronato. Essa impressão, que vários colegas de profissão tiveram, é ela mesma indicativa do objeto em questão. Faz parte das nossas fantasias democráticas.


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