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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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CRÍTICA

Uma guerra com roteiro

BIA ABRAMO
NO DIA seguinte ao início da guerra contra o Iraque, a rede norte-americana ABC dedicou seu horário dito nobre (das 20h às 23h) à cobertura da guerra e perdeu para a NBC, que preferiu manter sua programação de entretenimento. Exibiu uma reprise do seriado "Friends" e, com isso, atraiu 4 milhões a mais de norte-americanos do que aqueles que estavam assistindo ao noticiário de guerra. Os números foram divulgados por agências de notícias e publicados em vários veículos de comunicação.
Claro, há um dado de escapismo evidente: parte do poder da TV reside em funcionar como uma espécie de droga, como uma maneira de estar desperto sem estar realmente acordado ou, para usar uma palavra desgastada, mas ainda pertinente, de alienar-se. Logo, parece razoável que a ficção ganhe da realidade.
Mas no caso desta guerra contra o Iraque, em que a ficção urdida no Pentágono tenta se impor à realidade, pode-se supor que, naquela noite, os norte-americanos estavam, na verdade, escolhendo entre dois tipos de ficção. E, em maior número, preferiram o já testado ao ainda incerto. Como entretenimento, um episódio já exibido de "Friends" vale mais do que uma reprise da Guerra do Golfo.
Dias depois, na 75ª cerimônia de entrega do Oscar, o jornalista e cineasta Michael Moore, que levou o prêmio de melhor documentário de longa-metragem com "Bowling for Columbine", aproveitou o discurso de agradecimento para protestar contra a guerra. Diante de milhões de espectadores em todo o mundo, Moore convidou os outros indicados a subirem ao palco e, brandindo seu homenzinho dourado, disse: "Todos nós gostamos de documentário, mas vivemos num tempo de ficção, com resultados eleitorais fictícios, um presidente fictício... Estão nos enviando à guerra por razões fictícias."
O "tempo de ficção", que elegeu Bush e produziu a guerra, segundo Moore, invadiu o telejornalismo. A cobertura da guerra das TVs norte-americanas parece seguir um roteiro já escrito, cabendo aos jornalistas apenas captar as imagens que servem para ilustrá-lo -as que não cabem no roteiro, como, por exemplo, as das manifestações pacifistas, particularmente nos EUA, vêm sendo sistematicamente ignoradas ou relegadas a terceiro plano pelas emissoras. As imagens ao vivo, mesmo que não façam nenhum sentido, seja porque a qualidade segue sofrível na maioria dos casos, seja porque a narração do jornalista, via de regra, é incapaz de explicar e interpretar o que está, de fato, acontecendo, não saem da tela, como se o registro da realidade fosse ela mesma.
O tal do tempo real que as TVs se esforçam em apreender entra em choque com outro recurso usado à exaustão na cobertura extensiva da guerra: a repetição de imagens impactantes, muitas vezes descontextualizada. No dia dos "mil mísseis" sobre Bagdá, a formação rosa-alaranjada de fumaça, chamas e fagulhas que subiu quando uma bomba mais potente explodiu bem diante das câmeras, foi, à força da repetição, perdendo sua capacidade de informar: virou mera ilustração.
O interessante desta guerra é que, apesar dos esforços do Pentágono em impor sua versão ficcional, a realidade vem escapando por várias frestas. Quem acreditou no conto de carochinha da guerra rápida, precisa, eficiente, com poucas baixas, em que os invasores seriam recebidos de braços abertos pelos invadidos, já está sendo atropelado pelos fatos.

E-mail: biabramo.tv@uol.com.br


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