Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
02/12/2012 - 21h12

Décio Pignatari: Kierkegaard em Dogville

Publicidade

DE SÃO PAULO

O poeta e ensaísta Décio Pignatari escreveu sobre os dez anos do movimento cinematográfico Dogma para o caderno "Mais", na Folha de 24 de abril de 2005.

Poeta Décio Pignatari morre aos 85 em São Paulo

No texto, trata da influência da teologia existencialista do filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard sobre o grupo --de onde emergiram nomes como Lars von Trier e Thomas Vinterberg.

*

Kierkegaard em Dogville

DÉCIO PIGNATARI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há um pequeno mistério ético-ideológico envolvendo o grupo dinamarquês Dogma, especialmente o diretor Lars von Trier, e mais particularmente o filme "Dogville", pois não é comum que artistas talentosos de uma arte industrial voltada para o mercado sejam tão claramente marcados por um vinco ético-filosófico.

A crítica de cinema, embora bem informada, ainda não atinou com esse viés e toma um filme como "Dogville" pelo seu valor de face, ideologicamente falando --ou seja, como uma crítica social ao "império americano", inserindo-se, ao mesmo tempo, ainda que indiretamente, no sistema europeu de resistência à hegemonia cinematográfica ianque.

O Dogma dinamarquês, hoje em fase de desfazimento consentido, entremostra vários pontos de contato com a "nouvelle vague" francesa, tanto pela economia de meios, compensada pela inventividade da signagem cinematográfica, como pela postura ideologizante européia, traço que tenderia a acentuar-se em Godard, o que não parece e aparece de modo claramente discernível na grande produção italiana das três décadas que se seguiram ao pós-guerra.

Godard, Antonioni

Ambas as tendências parecem dizer-se adeus, uma à outra e a si mesmas, tomando o amor como tema, texto e pretexto, no início do novo século, com "Elogio ao Amor" (Godard) e "Além das Nuvens" (Antonioni/Wenders) -o primeiro, já envelhecidamente, a verbalizar o amor da película e a película do amor, com piadas curiosas sobre os EUA, enquanto Antonioni, em belas imagens e elipses narrativas, monta uma nostálgica metafísica erótica para a murmurante cerimônia de adeus dos corpos.

Mas os dinamarqueses do Dogma inovaram para além da fria exasperação sexual própria dos escandinavos, substituindo a ideologia, mesmo em sentido amplo, pela ética. Dogma introduziu o realismo ético no cinema, cuja contundência clama por um dies irae. Essa postura é diretamente influenciada pela filosofia teológico-existencial de Sören Kierkegaard (1813-1855).

Quiseram o destino e o acaso das sinapses do ser que eu me tornasse obcecado pelo absurdo absolutismo teo-existencial de Kierkegaard, e eles conduziram meus passos a Copenhague, em maio de 2004. Fotografei o largo Nytorv, residência da família, e o seu túmulo, no cemitério Assistens. Era uma semana de núpcias reais, não consegui os livros que desejava.

Mas descobri que o espírito do filósofo inspira até hoje todos os rebeldes e rebelados, individuais e grupais da Dinamarca, desde os marginais anarco-lumpen-punk, hoje praticamente confinados numa comunidade independente, no bairro de Cristiânia, até Lars von Trier (que estava filmando na Suécia) e seus "angry young men and women" do Dogma, passando pelos artistas do grupo Cobra, com sua explosão neo-expressionista da década de 1950, sem esquecer o enorme Carl Dreyer (1889-1968), de "A Paixão de Joana D'Arc" (1928) e de Ordet ("A Palavra", 1955), de que tanto ouço falar, mas que não consegui ver até hoje.

Igreja Luterana

Estão rolando (já rolaram até no Carnaval carioca) as comemorações do bicentenário de nascimento de Hans Christian Andersen, contemporâneo de Kierkegaard (que chegou a criticar um de seus romances), cujo sesquicentenário de morte também vai ocorrer neste ano, em outubro, sem tanta festa, com certeza. A Igreja Luterana é a igreja oficial do Reino da Dinamarca; seus sacerdotes são nomeados e pagos pela coroa.

Um de seus supremos dignitários, Hans Lassen Martensen, coroou o rei Frederico 7º. Kierkegaard, filho de pastor, perdeu os bens, a saúde e a vida por um Deus sem intermediários -ou seja, sem a Igreja Luterana e contra Martensen.

Cerca de 95% dos dinamarqueses professam a fé luterana; sobram 5% para outras crenças ou crença nenhuma (lembrando que toda a população do país corresponde à metade dos habitantes da região metropolitana de São Paulo). Daí que todo rebelde dinamarquês (lá é proibido morrer de fome) seja contra a igreja oficial, não necessariamente contra a fé cristã, mas necessariamente a favor de Kierkegaard. Aí está Dogma. Aí está Lars von Trier.

Outra novidade ético-religiosa e ideo-teológica de Lars von Trier está em que transpôs sua fúria kierkegaardiana para e contra os Estados Unidos. A Björk de "Dançando no Escuro" e a Nicole Kidman de "Dogville" são "Jesusas Cristas", refazendo os passos da cruz rumo ao gólgota da forca ou da vingança (curiosa coincidência com o filme de Mel Gibson, "A Paixão de Cristo", que também termina em zoom "plongé", como em "Dogville"). O chefão dos gângsteres é Deus Pai. O pastor hipócrita é a igreja, qualquer que seja ela. Óbvio também que "Godville" é "Dogville" pelo avesso, e vice-versa, homenagem cômica ao Dogma. Beckett já havia feito essa alusão no seu "Godot/todoG".

A obsessão apaixonada produz, às vezes, pequenas e prazerosas recompensas investigativas. Pois encontrei um texto, no imenso diário de Kierkegaard, já para o fim da vida, que parece apontar diretamente para "Dogville", tal a sua pertinência. O filósofo, que é também o melhor escritor dinamarquês, gostava de criar parábolas modernas (do período final do romantismo europeu).

Traduzo (da versão italiana) e encerro: "Imagine um canzarrão de caça bem amestrado que acompanha o seu dono numa visita familiar, em cuja casa, por azar, como costuma ocorrer em nossos dias, há um bando de crianças mal-educadas. Mal vêem o animal, começam a maltratá-lo. O cachorro, que possui o que aqueles debilóides não têm, a saber, educação, logo fixa o olhar no seu dono para captar um sinal sobre o que deve fazer. O bicho interpreta o olhar do dono como uma ordem para suportar todos os maus tratos como se fossem benefícios.
Naturalmente, isso leva a molecada a multiplicar as agressões, a ponto de se convencerem de que se trata de um cachorro palerma, já que suporta tudo dessa maneira".

PS. Coisa de cinéfilo: talvez gratuita, "Dogville" me traz à mente o filme "Nossa Cidade" (1940), baseado na peça teatral homônima de Thornton Wilder, "production design" de William Cameron Menzies, direção de Sam Wood.

Décio Pignatari é poeta, ensaísta e tradutor. É autor de "Letras, Artes, Mídia" (Globo), "Errâncias" (Senac) e "O Que É Comunicação Poética" (Ateliê), entre outros livros.

 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página