Comentário: Atrevida, Zélia Gattai teimou em viver
A casa de Zélia Gattai e Jorge Amado sempre foi aberta a todos. Posta no alto da rua Alagoinhas, número 33, cercada de árvores frutíferas, a Casa do Rio Vermelho, um dos bairros mais charmosos de Salvador, era ponto de encontro de gente de todos os cantos do mundo e, mais precisamente, de gente da Bahia.
Tuca Vieira/Folha Imagem |
Filha de dona Angelina e seu Ernesto, Zélia Gattai conviveu com grandes de seu tempo |
Nos últimos anos, Zélia foi para um apartamento e não vivia mais na velha casa, onde estão as cinzas do marido, em um recanto do jardim, debaixo da mangueira. Suas cinzas serão depositadas no mesmo lugar. Com a morte dela, no último sábado (17), a Bahia perde muito de sua graça. E o Brasil também.
Filha e Angelina e Ernesto Gattai, imigrantes italianos que chegaram crianças ao Brasil, Zélia nasceu em 2 de julho de 1916 e foi criada na casa da alameda Santos, número 8, numa São Paulo que há muito deixou de existir. Seu pai foi um dos primeiros mecânicos da capital paulista, responsável pala manutenção de carros de gente graúda da cidade no começo do século 20.
O ideário de justiça social, fruto do aprendizado desde a infância com os pais, nas reuniões das classes laboriosas, transformou-se em militância no Partido Comunista. Foi na organização de um comício comemorativo à liberdade de Luís Carlos Prestes (1898-1990) no estádio do Pacaembu, que teve participação do poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), que ela conheceu Jorge Amado (1912-2001), parceiro de toda uma vida, nos 56 anos de cumplicidade.
Reprodução |
Zélia Gattai e seu marido, o escritor Jorge Amado, em foto feita com disparador automático; veja galeria de imagens da escritora |
Ao lado do marido, Zélia conviveu com os grandes e os pequenos de seu tempo. Viajou aos confins da terra. Viu e reviu muita coisa. Mas, jamais, tornou-se soberba diante da importância do sobrenome Amado. Tanto que, quando resolveu começar sua carreira de memorialista, aos 63 anos, em 1979, não quis o nome do marido. Preferiu o Gattai para assinar o primeiro tomo de suas memórias, "Anarquistas, Graças a Deus".
Zélia foi simples até quando envergou o fardão, que deixa muitos soberbos, e substituiu o marido na Academia Brasileira de Letras, na cadeira de número 23, cujo fundador foi ninguém menos que Machado de Assis e o patrono, José de Alencar.
Atrevida
No começo de 2002, a Casa do Rio Vermelho estava movimentada. Uma faixa, em frente à entrada, enviada por amigos, a chamava de "tri-acadêmica", devido também às eleições para a Academia de Letras da Bahia e de Ilhéus, além da ABL. Naquele dia, Zélia confidenciou estar encabulada diante de tantas homenagens.
Filhos, empregados, netos, os cachorros Fadul Abdala e Morita e até uma trupe de teatro querendo autorização para montar o romance de Jorge Amado "Capitães de Areia" circulavam pelo espaço, fazendo-o alegre e cheio de vida, como tanto gostava.
Zélia tentava dar atenção a todos com bolo e refrigerante para os convivas. Quando parte da bagunça se foi, sentou-se diante da TV para fazer o que era uma de suas paixões: ver novela. Com a simplicidade que a acompanhou por toda a vida. Ela costumava dizer que, dos cinco filhos de dona Angelina e seu Ernesto, era a única que teimava em viver. Guerreira, fez isso enquanto pôde. Atrevida, essa menina, diria sua mãe.
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