Desenhar conflitos é perturbador, diz Joe Sacco, que vem para a Flip
No início dos anos 90, Joe Sacco, 50, era um jornalista frustrado e amante de histórias em quadrinhos que levava a vida em Berlim desenhando pôsteres de shows de bandas de rock como Yo La Tengo e Mudhoney.
O perfil parece não combinar com o do autor popstar que fala na Flip, em Paraty (RJ), na próxima semana, sobre história em HQ.
Apontado como o criador de um novo gênero, a reportagem em quadrinhos, tratou do conflito Israel-Palestina em livros como "Notas sobre Gaza" (Companhia das Letras) e "Palestina" (Conrad; R$ 69,90; 328 págs.), recém-lançado em edição de luxo.
Sua obra sobre o drama do povo palestino na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, baseada em longas temporadas no Oriente Médio, recebeu os principais prêmios de HQs do mundo e elogios do crítico literário Edward Said (1935-2003), autor de "Orientalismo" (Companhia das Letras), importante estudo sobre a representação do Oriente pelo olhar ocidental.
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Quadrinhos extraídos do livro "Palestina", de Joe Sacco |
AULAS DE HISTÓRIA
O autor compreendeu a problemática do clássico de Said por experiência própria.
Até 1982, as aulas de história e o noticiário norte-americano deram ao jovem Sacco uma certeza sobre o Oriente Médio: a de que todo palestino era um terrorista.
Foi a invasão do Líbano, naquele ano, que balançou essa crença. "Fiquei me perguntando: Por que os palestinos estavam sendo assassinados? Achava que eles eram os assassinos!", lembra ele, em entrevista à Folha.
Dez anos depois, ele embarcava para a região com a ideia de criar uma inocente HQ sobre a viagem.
Ao pisar em Israel, no entanto, seu instinto jornalístico falou mais alto.
"Foi algo orgânico e impulsivo: criei rotinas metódicas de entrevistas e anotações. Afinal, eu havia sido treinado na univesidade para aquilo", diz. "Reuni duas paixões: gibis e jornalismo."
A extensa pesquisa embasou uma HQ sensível, sempre em preto e branco, sobre a vida dos refugiados, os bloqueios e as desapropriações na série "Palestina".
Foi a primeira HQ de não ficção a suscitar comparações com "Maus", obra de Art Spigelman sobre a Segunda Guerra e os campos de concentração nazistas, vencedora do Pulitzer de 1992.
"Os quadrinhos são uma nova literatura. E são como um vasto território inexplorado. Há possibilidades em todas as direções."
HORROR DE AUTOR
Sacco, no entanto, parece fadado a seguir os rastros de guerras e questões humanitárias. "Duas semanas após concluir 'Palestina', eu já estava na Bósnia para registrar a guerra que ocorria ali."
A investigação da limpeza étnica sérvia deu origem ao impressionante "Área de Segurança: Gorazde" (Conrad).
Mas os anos de desenhos sobre conflitos e atrocidades deixaram marcas no autor.
"Estou cansado de lidar e descrever incidentes horríveis", desabafa. "Quando você entrevista alguém, não importa quão trágica seja sua história, é preciso ir além das lágrimas e da histeria para chegar aos fatos que interessam", diz.
"Mas, para desenhar propriamente um soldado armado, um tiroteio ou um corpo no chão é preciso coabitar aquela cena. Fazer isso dia após dia, ao longo de anos... Todos aqueles cadáveres... É muito duro. Afeta você."
Fugir do tema parece impossível para Sacco, que, após "Notas sobre Gaza", fez gibis sobre africanos que tentam imigrar para a Europa, a pobreza na zona rural da Índia e a indústria de carvão nos EUA, inéditos aqui.
"Preciso ir para outra direção. Mas, mesmo quando escrevo prosa, a história parece se voltar sozinha para questões de violência."
Leia abaixo a íntegra da entrevista com Joe Sacco.
*
Folha - Você chamaria seu trabalho de literatura em quadrinhos, jornalismo em quadrinhos ou simplesmente história em quadrinhos?
Joe Sacco - Eu só faço o que faço e outras pessoas é dão nomes a isso [risos]. Na maior parte do tempo, no entanto, faço jornalismo na forma de gibis. Acho que chamo isso de jornalismo em quadrinhos.
Há menos de dez anos, HQs eram para crianças ou nerds. E hoje?
Os quadrinhos são uma nova literatura. E são como um vasto território inexplorado. Há possibilidades em todas as direções. Não acho que os cartunistas estavam tentando desesperadamente se tornarem literatos. O que houve é que muitos amantes de histórias em quadrinhos perceberam o potencial desse formato. E eles não estavam interessados em super-heróis.
Quais são seus autores favoritos?
Não são cartunistas. Minha maior influência foi George Orwell e seu compromisso com a justiça social visto em "O Caminho para Wigan Pier", que fala da depressão no Reino Unido nos anos 1930. Aquilo foi inspirador. Ele reportou sobre a vida dos mineiros, ficou na casa deles... Era muito compromissado. Em termos de estilo, Hunter Thompson foi importante. E também "Despachos do Front", de Michael Herr, sobre a Guerra do Vietnã, em que é possível imaginar como era respirar naquele lugar, naquele momento.
Você cresceu lendo quadrinhos e se graduou em jornalismo. Quando essas duas coisas se fundiram?
Isso aconteceu quando eu fui para o Oriente Médio pela primeira vez, no início dos anos 90. Naquela época, como eu não encontrava um trabalho legal como repórter, resolvi ser cartunista. Vivia em Berlim, desenhando HQs, pôsters de rock e capas dos discos de bandas como Yo La Tengo, Soundgarden e Mudhoney. Mas eu queria saber o que estava acontecendo no mundo" Resolvi viajar para o Oriente Médio e escrever uma história em quadrinhos sobre minhas experiências lá. Só que um impulso jornalístico falou mais alto! Ao chegar lá, criei rotinas metódicas de entrevistas e anotações. Afinal, eu havia sido treinado para aquilo na universidade: coletar e reunir pedaços de informações que formem um todo. Voltei para casa e comecei a desenhar gibis que tinham um espírito jornalístico forte. Foi um processo orgânico. Juntei dois amores: os quadrinhos, que eram meu modo de vida na época, e o jornalismo, que foi algo sempre muito importante para mim.
Como surgiu seu interesse pelo Oriente Médio?
Viver na Europa foi muito bom pra mim. Os europeus têm perspectivas cheias de nuances sobre tudo. Basicamente, durante o colegial, nos EUA, eu presumia que todo palestino era terrorista. E não me culpo por isso porque, nos jornais e na TV, toda vez que a palavra palestino era mencionada, ela estava relacionada a atividades terroristas. Só quando me tornei autodidata é que percebi que os sequestros e as bombas de fato ocorriam, mas compreendi quais eram seus contextos. Não que isso justifique atos de terror, mas faltava contexto à mídia norte-americana. Um evento que me fez questionar o que eu lia e ouvia foi a invasão do Líbano por Israel em 1982. Os massacres em dois campos de refugiados palestinos levantaram uma questão para mim: Por que os palestinos estão sendo assassinados? Eu achei que eles eram os assassinos! Devagarzinho, minhas ideias começaram a mudar. E foi por isso que resolvi que tinha de ir até lá e ver a realidade com meus próprios olhos. Me parece já parte da sabedoria popular que o conflito entre Israel e os palestinos está no coração de muito daquilo que acontece na região. Ele determina os aliados escolhidos pelos EUA, afeta o Egito... Ele me interessa em dois níveis. O que me move, do ponto de vista pessoal, é a quantidade de impostos que saem do meu bolso para financiar o atual sistema. Não me importaria de os EUA darem bilhões de dólares a Israel se não houvesse a ocupação nem a opressão dos palestinos. Eu não gosto de pensar que meu dinheiro sustenta isso. A outra coisa que me incomoda é que eu estudei jornalismo como algo objetivo, imparcial, equilibrado. E nenhum desses princípios me ensinou nada sobre o que acontece no Oriente Médio. Isso me chateia muito.
Barack Obama tem feito pouco para mudar o conflito na região.
Eu acho que Obama é inútil. Ele é apenas outro presidente americano. Ele internalizou todo o grande poder imperialista dos EUA e é assim que ele vai agir. Talvez ele não seja tão ruim como outros. Mas ele não é ótimo, com certeza, e não vai melhorar daqui para a frente.
E qual seria uma solução viável para o conflito?
Uma solução humana seria o retorno às fronteiras de 1967. Talvez algumas trocas de terras... Até Obama mencionou isso. Mas, eu adicionaria, é preciso também lidar seriamente com as injustiças cometidas com os refugiados. Não se trata apenas de paz. Porque todos querem a paz desde que ela signifique uma série de hostilidades de um lado sobre outro oprimido. Isso é uma paz injusta e que vai irromper em mais violência lá na frente. A voz dos refugiados tem de ser levado em consideração. Senão a paz será apenas uma assinatura num papel.
Após a série de livros sobre a Palestina, você foi investigar a limpeza étnica na Bósnia. Por que esse fascínio com áreas de conflito?
Terminei a série de livros sobre a Palestina em 1995 e, duas semanas depois, já estava na Bósnia. Eu nasci em Malta e meus pais viveram durante a Segunda Guerra. Nós nos mudamos para a Austrália e lá haviam muitos imigrantes europeus. As conversas sempre giravam em torno da guerra. Achei que, depois de 1945, haveria uma paz eterna na Europa. Era inacreditável que uma guerra estava ocorrendo ali novamente. Haviam outros conflitos na época, em especial o genocídio de Ruanda, na África. Mas fiquei tocado pelo fato de que não só as pessoas da África e do Oriente Médio que estavam malucas: os europeus também! E, quando inicio o projeto de um livro desses, a dedicação é tamanha que tem de ser algo que me interesse profundamente.
O que ainda o interessa em termos de conflitos e questões humanitárias?
Acho que, a essa altura da vida, não preciso mais ver de perto outra guerra ou conflito. Desde de "Notas sobre Gaza" (Companhia das Letras), fiz gibis sobre africanos que tentam imigrar para a Europa, sobre extrema pobreza nas zonas rurais da Índia e sobre a indústria de carvão nos EUA. Descobri que não adianta olhar só para a história e a economia se você quer entender como essas coisas acontecem. Ainda me interesso por conflitos, mas tendo a me voltar agora para as raízes da violência. Quero explorar a natureza humana, comportamento, biologia, primatologia e outras ciências. Acho que é por aí que eu vou. Estou cansado de lidar com conflitos. Não quero mais descrever incidentes horríveis.
Desenhar massacres e genocídios teve algum tipo de efeito sobre você, pessoalmente?
Esse é outro motivo para mudar. Definitivamente, isso me marcou. No início, achei que conseguiria lidar bem com o fato de desenhar imagens de violência. Mas, no último livro sobre Gaza, retratar os dois massacres ocorridos em 1956 foi muito duro. É duro também para o leitor. Mas passar anos desenhando aqueles cadáveres... Afeta você. E afeta mais do que simplesmente reportar. Quando você entrevista alguém, não importa quão trágica seja sua história, é preciso ir além das lágrimas e da histeria para chegar aos fatos que interessam. Há uma atitude cirúrgica: você tem um foco e é isso o que você extrai da conversa, como um cirurgião retira um órgão. Quando há uma bateria de entrevistas a fazer, você se mantém distante porque há sempre a próxima história a ouvir. Você tem de ter uma atitude fria para ser um bom jornalista. Mas, para desenhar propriamente um soldado armado, um tiroteio ou um corpo no chão é preciso coabitar aquela cena. Fazer isso dia após dia, ao longo de anos... Todos aqueles cadáveres... É muito duro. Afeta você.
Como sair dessa temática?
Tenho muito trabalho a fazer antes de poder ir em outra direção. Dois ou três anos atrás, eu comecei a escrever alguns roteiros. E eles eram todos divertidos e espirituosos. Mas, quando soltei as rédeas das histórias e deixei que caminhassem sozinhas, elas voltaram ao tema da violência de alguma forma. Tive de admitir que, se as histórias iam nesta direção, eu tinha de prestar atenção naquilo. E é por isso que estou agora fascinado pelo que chamo de ciência da violência.
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