Depoimento: 'Antônio Ermírio entrou no teatro pelos fundos'
Quando o dramaturgo e ator Marcos Caruso recebeu um convite para almoçar com o empresário Antonio Ermírio de Moraes (1928-2014), não entendeu nada.
O ano era 1994, e desse almoço saiu a parceria que resultou na primeira peça do presidente de honra da Votorantim, "Brasil S.A.", que estreou em 96, dirigida por Caruso. Moraes escreveu mais duas peças, "S.O.S Brasil" (1999) e "Acorda Brasil" (2006).
Caruso conta à Folha como foi trabalhar com o homem "do cimento", que era também "do teatro". (IARA BIDERMAN)
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"Eu só tinha estado com Antônio Ermírio uma vez, em 86, quando estava em cartaz com "Sua Excelência, o Candidato". Ele concorria ao Governo do Estado, foi ver a peça, tiramos fotos juntos, mas não passou disso. Em 94, quando um assessor dele me ligou para marcar um almoço, fiquei curioso. A primeira coisa que pensei foi que ele queria patrocinar uma peça minha.
Marcamos no restaurante do hotel Ca'd'oro, onde ele almoçava todas as sextas-feiras, às 12h15 em ponto. Durante o almoço falamos de economia, política, de tudo. Mas só no cafezinho ele me contou que tinha escrito uma peça e queria que eu dirigisse. Eu disse que queria ler a peça antes de responder. Quando cheguei em casa, o texto já estava lá.
Eu li. Tinha algumas situações boas, personagens, conflitos, mas parecia mais uma palestra para a Fiesp.
Marcos Caruso/Arquivo pessoal | ||
Antonio Ermírio de Moraes, Marcos Caruso, o ator Eurico Martins e Regina Moraes, em 1986 |
Marquei outro almoço, sexta-feira, às 12h15, no Ca'd'oro. Pensei: "Tenho que ser absolutamente honesto com este homem".
E tive uma inspiração na hora de falar. Fiz uma pergunta: "Se eu fabricasse cimento em meu quintal e quisesse construir uma ponte, o que aconteceria?". Ele me respondeu: "Talvez essa ponte não tivesse estrutura suficiente para ficar de pé".
Foi quando expliquei que era isso que estava acontecendo com a peça que ele tinha escrito. E que, do mesmo jeito que o sr. Antônio poderia me dar a fórmula para construir uma ponte, eu poderia lhe ensinar a fórmula para o fazer uma peça.
Ele parou, me olhou e perguntou de onde começaríamos. Do zero.
Começamos a nos encontrar, eu fazia ele escrever cenas. Não escrevi uma linha, fui só o provocador.
Ele queria me pagar por aqueles encontros como se fossem aulas, pediu para um assessor me perguntar quanto custariam. Respondi que conversaria pessoalmente sobre isso e marcamos um novo almoço, sexta-feira, 12h15 no Ca'd'Oro.
No encontro, eu lhe expliquei: "Se eu cobrar 10 mil, o sr. paga, se cobrar 100 mil, paga, se cobrar 1 milhão, também. Então não vou cobrar nada, porque quanto mais o senhor pagar, mais vai mandar em mim e sou eu quem tem que mandar nesse caso. Quando montar a peça recebo, cobrando o preço do mercado.
E foi assim que ficamos seis meses trabalhando, duas vezes por semana, no escritório, na casa dele. Na Votorantim os assessores estranhavam, porque ele era conhecido por ter reuniões rapidíssimas, e comigo ficava duas, três horas na sala. E empolgadíssimo. O professor José Pastore foi muito importante nos nossos encontros.
Isso resultou na peça "Brasil S.A".
Quando começamos a montar, ele queria alugar teatro inteiro para ensaiar, comprar os móveis para o cenário. Eu disse que não era assim que funcionava, a gente alugava sala (geralmente um pulgueiro), fazia permuta para o cenário. Queria que Antônio Ermírio entrasse no teatro pela porta dos fundos, entendesse como as coisas funcionam.
Ele entrou no espírito da coisa e se encantou de tal maneira que um dia cheguei ao ensaio e ele estava agachado, com fita crepe na mão, para fazer as marcações do palco.
Na estreia, dei um beijo no Antônio Ermírio em cena, diante de uma plateia que era o PIB nacional. Falei que era o batismo dele no teatro.
Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
Elenco da peca 'Brasil S.A.' no Teatro Procópio Ferreira, em foto de 1996 |
No dia seguinte, fui almoçar na casa dele e perguntei para a Regina [mulher do empresário] se tinha feito mal em beijá-lo diante de uma plateia de 600 pessoas. Foi quando ele entrou na sala e disse: "Obrigado por ter vindo almoçar. Mas antes quero te dar um beijo", e me beijou ali, diante de sua mulher.
E eu disse que ele tinha me enganado. Eu pensava que ele era um homem frio como alumínio e duro como cimento, mas descobri que era extremamente bem-humorado, maleável. Não tinha a dureza que passava para os outros. E tinha conseguido o que queria com o teatro, tocar as pessoas com seu texto.
A partir daí convivemos de quinta a domingo, ele ia todas as noites ao teatro. Mudou sua rotina. Acordava às 5h, mas ficava até o fim da peça e saía para jantar com o elenco.
Ele foi um homem que ajudou o teatro como um todo.
Quando eu era presidente da Apetesp [Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo], o teatro Ruth Escobar, que pertencia à associação, correu o risco de fechar por não ter elevador para cadeirantes. Antônio Ermírio deu o elevador de presente.
Quando o teatro Maria Della Costa estava correndo risco de pegar fogo, ele armou uma reunião e juntou os representantes do prefeito Maluf, do governador Mário Covas e do presidente Fernando Henrique Cardoso, e o problema foi resolvido.
Tenho orgulho de ter sido escolhido para trabalhar com ele. Perguntei-lhe por que eu, e ele disse que tinha feito pesquisas –era um homem de estatísticas– e viu que eu tinha quatro peças em cartaz, em uma delas eu atuava e, ao mesmo tempo, estava dirigindo a Beatriz Segall e a Dercy Gonçalves. Ele deve ter pensado `esse cara é como eu, faz 50 coisas ao mesmo tempo'."
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