Análise: Tradução de Christian Werner da 'Odisseia' torna leitura acessível
Sabemos que a vida literária de um país vai bem pelo número de edições e reedições de tradução dos clássicos.
No Brasil, vivemos um momento talvez sem precedentes, e isso se mostra pelo número de versões da "Odisseia" de Homero disponíveis.
Já tínhamos à nossa disposição reedições das traduções poéticas de Odorico Mendes (Martin Claret) e de Carlos Alberto Nunes (Ediouro e Hedra) e da versão em prosa de Jaime Bruna (Cultrix).
Vimos na última década o lançamento de mais duas versões em formato bilíngue, uma de Donaldo Schüler (L&PM, R$ 61), de 2007, outra de Trajano Vieira (Editora 34, vencedora do Jabuti de tradução, R$ 86); além da edição nacional da tradução lusitana de Frederico Lourenço (Companhia das Letras, R$ 32,50) —estas últimas de 2011.
Mesmo diante dessas versões disponíveis no mercado, Christian Werner, professor de língua e literatura grega da USP, depois de traduzir duas obras de Hesíodo, lança agora sua versão da "Odisseia" (Cosac Naify, R$ 79).
A edição é acompanhada por apresentação de Richard Martin, introdução do próprio Werner e posfácio de Luiz Alfredo Garcia Roza.
O volume ainda traz dois textos anexos —o poema "Ítaca", de Konstantinos Kaváfis, e o conto "O Silêncio das Sereias", de Franz Kafka— e um glossário de nomes próprios.
Trata-se, portanto, de edição importante, junto com as outras traduções, e que busca um lugar em meio a elas.
Divulgação | ||
Colagem de Odires Mlászho, da edição da Cosac Naify |
CLAREZA E FLUÊNCIA
Werner comenta que procurou conferir à tradução "clareza, fluência e poeticidade, elementos fundamentais do original".
Se por um lado sua versão não parece correr o risco que se espera de uma empreitada poética, por outro é preciso reconhecer que o resultado final atinge, de fato, bastante fluência e clareza.
A tradução ainda preza por dois fatores importantíssimos da poética homérica, até hoje pouco explorados na maioria das outras traduções: as repetições de expressões e estruturas, que marcam a oralidade original do texto em suas fórmulas, e os efeitos que decorrem da sintaxe do textos, sobretudo nos casos de "enjambement" (quebras de verso) e dos posicionamentos fixos de certas estruturas.
É o que se percebe ao compararmos três trechos desta tradução com recorrências de tema, vocabulário e posição:
"Em cima compreendeu no juízo seu inspirado canto/ a filha de Icário, Penélope bem-ajuizada;/ e a elevada escadaria de sua morada desceu,/não sozinha, mas com ela seguiam duas criadas" (Canto 1, versos 328-31)
"Assim falou e desceu dos aposentos lustrosos,/não sozinha, mas com ela seguiam duas criadas" (Canto 18, versos 206-7)
"Isso disse e subiu aos aposentos lustrosos,/não sozinha, mas com ela iam outras criadas" (Canto 19, versos 600-1)
Com isso, a tradução de Werner é a que mais se aproxima de um modelo de composição oral, embora preze sempre que possível pela clareza que um decalque certamente impediria.
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Assim, em comparação às traduções mais recentes de Schüler, Vieira e Lourenço, a nova se aproxima sobretudo da de Lourenço.
Schüler havia ousado com misturas de registro e ritmos, com resultado desigual e por vezes infeliz. Vieira optou por uma poética colada à tradução de Haroldo de Campos para a "Ilíada" –uma poética de risco, que por vezes imita os tiques do mestre.
Lourenço havia feito uma versão mais prosaica e fluente. Comportada, porém acurada, capaz de comunicar com novas gerações de leitores sem muitos estranhamentos.
Werner parece ficar a meio caminho entre a fluidez e as demandas da sintaxe "estrangeirizante" e, se não busca um projeto de tradução poética radical, certamente poderá ser uma entrada para a poesia homérica, acessível a um público variado, mas que também resulta num Homero diverso.
Sinal de que os tempos estão bem, e nosso Homero pode tornar-se, de fato, múltiplo.
GUILHERME GONTIJO FLORES é professor de língua e literatura latinas na UFPR e tradutor de "A Anatomia da Melancolia" (Editora da UFPR)
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