Longa mostra massacre de caboclos em Santa Catarina
A madeireira multinacional chegou derrubando araucárias e imbuias. Rasgou a terra fazendo uma estrada de ferro e arrastou as lavouras. Tentou expulsar os que lá viviam. Eram os caboclos descendentes de escravos, índios, peões.
Deu em guerra, esquecida e sangrenta, no planalto catarinense. Nesta quarta (1º) se completam 100 anos do massacre dos caboclos, ocorrido onde hoje existe o município de Timbó Grande (457 km a noroeste de Florianópolis).
Neste dia, descendentes dos revoltosos da cidade poderão lá assistir a "Terra Cabocla", de Marcia Paraiso e Ralf Tambke, documentário sobre a revolta. O longa vai percorrer a região do Contestado, conflito que deixou milhares de mortos.
O filme fala em genocídio. Ouve moradores, historiadores. Desmonta a versão de que a guerra teria sido fruto de fanáticos religiosos. Apesar de ter uma feição mística, o que houve foi uma luta de pobres pela posse da terra, defendem os entrevistados.
Divulgação | ||
Plantador de pínus em Santa Catarina, em cena do documentário |
Tal como em Canudos (1896-97), no Contestado (1912-16) houve forte repressão do Exército, que enviou para lá 6.000 homens, além de contar com mil jagunços de fazendeiros da região. Mas há diferença entre as revoltas.
Se na Bahia a oligarquia local encampou a história da luta, transformando o sertanejo e a fome em ícones do Nordeste, em Santa Catarina a rebelião foi logo escondida, observa, na fita, o historiador Paulo Pinheiro Machado.
Autor de "Lideranças do Contestado" (Editora Unicamp, 2004), ele diz que a narrativa da revolta cabocla não se encaixava com o projeto da oligarquia catarinense, que queria um Estado "moderno, europeizado e branco".
Do lado dos derrotados, nota ele, a violência foi tamanha que sufocou a memória servindo como forma de proteção. No documentário, descendentes falam do silêncio dos avós e dos desabafos pavorosos sobre rios de sangue.
"É uma tentativa de fazer um registro que coloque o povo caboclo como protagonista. Eles foram injustiçados, até hoje sofrem pela guerra", diz a diretora. Para ela, há outro fator que explica o esquecimento.
"O Contestado foi uma guerra camponesa. E no Brasil, até hoje, há um tabu em relação à propriedade da terra. Não se discute reforma agrária e não se respeita as populações tradicionais. Por isso o conflito foi silenciado."
O filme aborda a conexão religiosa do levante, especialmente no seu caráter anticapitalista. "Quem tem moi, e quem não tem moi também", era a frase atribuída ao líder revoltoso, monge José Maria.
"A terra está no centro da questão, o argumento do fanatismo religioso é falacioso. O que se propunha era uma nova ordem política: igualdade social e uma sociedade sem capital. Os monges morreram e a guerra se perpetuou", assinala a cineasta.
Após a guerra, aponta o documentário, se acentuou o processo de "branqueamento" da população e se criou uma espécie de apartheid social, que ainda permanece.
"Onde está a população cabocla? Em pleno território do Contestado há uma cidade como Treze Tílias, totalmente austríaca. Há também muitas empresas estrangeiras que exploram pínus e eucalipto em grandes propriedades. Quando se tira a possibilidade de acesso à terra, sustento e base daquelas famílias por gerações, se desestabiliza uma cultura", opina a diretora.
De acordo com ela, após perder suas terras para projetos de colonização de europeus e gaúchos, a população tradicional ou foi para a periferia das cidades trabalhar nas indústrias de madeira e de maçã ou tenta retomar a terra, por meio do movimento social organizado.
Nesse sentido, o historiador Pinheiro Machado afirma que "a guerra continua. E continuam vencendo os coronéis". Mas, segundo ele, há movimentos de resistência entre descendentes de caboclos que ainda hoje defendem os princípios básicos da revolta: justiça e bem estar.
Levado às telas em ficção por Sylvio Back ("A Guerra dos Pelados", 1970), o Contestado ganha com "Terra Cabocla" uma nova visão. Pode abrir caminho para que a revolta deixe as notas de rodapés dos livros de história. Cem anos depois, já é tempo.
TERRA CABOCLA
DIREÇÃO Marcia Paraiso e Ralf Tambke
PRODUÇÃO Brasil, 2015
QUANDO qua. (1º), às 19h, na Escola Estadual Machado de Assis, r. Claudiano Alves Rocha, 340, em Timbó Grande (SC)
Livraria da Folha
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