Em 'O Vilarejo', Raphael Montes exibe potencial maléfico do homem comum
As histórias de "O Vilarejo" não deveriam ser lidas, e sim contadas em voz soturna em torno de uma fogueira, em noite de lua cheia. Não são contos fantasmagóricos nem relatos do sobrenatural, nada de mula-sem-cabeça ou morcegos chupadores de sangue, mas trazem o gosto de terror que costuma rechear conversas noturnas em acampamentos.
Como em outras obras do gênero –um exemplo é "O Diário de Drácula", do romeno Marin Mincu–, o autor se apresenta como mero recuperador de manuscritos antigos e misteriosos. No prefácio, Raphael Montes informa que os textos foram produzidos em cimério, "língua morta pertencente ao ramo botno-úgrico", e encontrados por acaso em um sebo do Rio de Janeiro.
Decifrados pelo jovem escritor carioca –nascido em 1990, o autor é apontado como prodígio literário e produz roteiros para cinema e TV–, os contos revelam até que ponto pode chegar a maldade humana.
Marcelo Damm | ||
Ilustração de Marcelo Damm para o livro 'O Vilarejo', de Raphael Montes |
Seu caráter é tanto mais terrível porque os personagens são gente comum, de boa cepa –uma prestimosa mãe de três filhos, irmãs adolescentes que brincam sem culpa por campos verdejantes, trabalhadores que mourejam para garantir o sustento da família.
Tangidos pela guerra, porém, pressionados pela fome e pelo frio, acossados pelo medo e pela solidão, eles deixam que a luta pela sobrevivência os transforme em predadores sexuais, torturadores, assassinos.
Os breves contos do pequeno livro –93 páginas– são escritos em linguagem simples e direta, conduzindo o leitor a uma parceria, uma certa cumplicidade com as figuras que habitam o vilarejo. Até que, num zás-trás, o simpático morador comete ato demoníaco inspirado por um dos sete pecados capitais.
Ainda que laicos e pagãos, os contos de Raphael Montes são tecidos por forte componente moralista, tal como as fábulas.
Na maioria das histórias, a trama é tão instigante que o leitor pode nem se dar conta do "ensinamento" que encerra. Os contos são organizados em uma estrutura que se poderia chamar de jornalística –o primeiro é o mais dramático e terrível, os que seguem contribuem para que se entenda os bastidores da história, e o último retoma a trilha inicial, esclarecendo elementos que ainda estavam obscuros.
Nesse fechamento, o moralismo salta dos recônditos do tecido da trama e se expõe de forma explícita, incomodamente didática.
Também nele aparecem elementos sobrenaturais, o que reduz a carga de terror dos textos –afinal, seu valor está justamente em mostrar o potencial maléfico do homem comum.
O Vilarejo |
Raphael Montes |
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De qualquer forma, "O Vilarejo" propicia bons momentos de leitura. Engrandecido por ótima edição e ilustrações superbacanas, o conjunto ajuda a lembrar os leitores da era digital do prazer de ter nas mãos um livro de verdade.
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