CRÍTICA
Zizek mostra humor sofisticado e antissoviético em novo livro
O caleidoscópio humorístico vai além de uma mera coletânea ao ganhar pitadas de filosofia
O táxi deslizava pela praça Lubianka, em Moscou. O motorista apontou para o prédio lúgubre, de poucos andares, no centro da rotatória. Lá, despontava a sede da KGB, polícia política soviética.
"É o edifício mais alto do país", comentou ele em voz baixa. "Do porão, é possível ver a Sibéria."
Em meus anos moscovitas, trabalhando como correspondente da Folha, habituei-me ao vasto anedotário sobre o desparecido socialismo real, regime pródigo em gerar zombarias. Como válvula de escape, o humor sabotava pilares da repressão.
Anne von der Heiden/Divulgação | ||
Retrato do filósofo esloveno Slavoj Zizek |
Em livro lançado pelo Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha, o pensador esloveno Slavoj Zizek coleciona anedotas antissoviéticas e mostra que, além de espalhar polêmicas e absorver títulos como o de "Elvis da teoria cultural", cultiva um padrão humorístico encontrável em quem viveu décadas sob o tacão comunista.
São também alvo de "As Piadas de Zizek" judaísmo, cristianismo, sexo, com anedotas quase sempre acompanhadas de comentários e digressões do filósofo, que recheia o livro com as tiradas ácidas e sem compromisso com o "politicamente correto". "A graça das piadas é exatamente magoar ou humilhar alguém...", escreveu.
A arte das "boutades" sem golpes rudes ou ofensas se torna mais sofisticada e saborosa. Zizek, porém, não se preocupa com isso e mistura piadas de gosto inquestionável com as de calibre duvidoso.
O caleidoscópio humorístico vai além de uma mera coletânea ao ganhar pitadas de filosofia e psicanálise, áreas de atuação profissional do polemista.
Joao Wainer/Folhapress | ||
O filósofo esloveno Slavoj ZizŽižek em entrevista à Folha, em 2003 |
Aparece na obra uma piada que imaginava brasileira, mas Zizek a apresenta como eslovena. É a "Mãe, só tem uma", título sob o qual alunos deveriam escrever um texto. Um jovem relatou ter surpreendido a genitora na cama, com um amante, e a reação foi uma ordem ao filho, para trazer duas cervejas. Ao abrir a geladeira, o menino esbravejou: "Mãe, só tem uma".
Zizek dispara ainda contra líderes políticos como Leonid Brejnev (1906-1982) e George W. Bush. Senti falta de piadas sobre Mikhail Gorbatchev, pai da glasnost, período rico em chacotas.
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Em 1996, testemunhei Gorbatchev contar uma piada a um grupo de jornalistas. No auge da escassez soviética, dois amigos esperavam numa fila, havia horas, por pão. Até que um deles se cansou e disse que iria ao Kremlin assassinar Gorbatchev, a quem responsabilizava pela miséria.
Mais tarde, o russo enfurecido retornou à fila. O amigo que havia permanecido perguntou: "Matou o Gorbatchev?". "Não", respondeu o matador frustrado. "A fila no Kremlin está maior do que essa aqui."
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