CRÍTICA
Em novo livro, Ingrid Betancourt vira escritora banal de autoajuda
Os candidatos a presidência, os mártires e as celebridades em geral deviam ser alertados de que nem sempre a ficção é uma prostituta dócil e confiável. Às vezes ela deixa de ser apenas um apêndice no currículo do indivíduo e acaba comprometendo a reputação do mesmo.
Quase que Ingrid Betancourt quebra a cara com "Linha Azul" –segunda experiência "literária" depois do ótimo "Não Há Silêncio que Não Termine".
Julia apaixona-se por Theo. Ela é uma espécie de vidente que sai do corpo, e ele é aquilo que os místicos do século 20 chamavam de "ativista político". Década de 1970. A Argentina vive os anos de chumbo.
Apaixonada e engajada na luta armada contra a ditadura, Julia é capturada pelos milicos. E aí o leitor há de se perguntar: que diabo de vidente é essa que não prevê o próprio futuro? Pois é. A vidente e o "jovem idealista" são do tipo que "engravidam juntos", que se imaginam diferentes "nós não somos assim" e que farão a autora apostar nessa tese/lição até o final do livro.
Rodrigo Capote/Folhapress | ||
Ingrid Betancourt durante palestra no evento promovido pela HSM no Teatro Alpha, em São Paulo |
O casal modorrento é separado. Julia está gravida!
Todos sabemos que Ingrid Betancourt foi, é e sempre será a refém mais notória das Farc, que a autora é PhD em passar maus bocados nas mãos de assassinos, psicopatas, terroristas, mercenários e idealistas, estes últimos os mais nefastos, a meu ver.
PAIXÃO NO CATIVEIRO
Nota de realidade. Ingrid e o ex-senador colombiano Luis Eladio Pérez, o Lucho, experimentaram uma paixão no cativeiro. Claro que essa experiência guarda afinidade com os perrengues dos personagens Julia e Theo. E, para quem gosta de sadismo, os relatos e as impressões sobre torturas, escritos por uma vítima especialista, salvam o livro. Exemplo: "Chorou semanas a fio por se descobrir viva, por ainda ter um corpo sobre o qual eles podiam tripudiar". Etc etc.
Se Ingrid Betancourt se limitasse apenas à experiência no cativeiro teríamos um documento interessante do feitio de "Não Há Silêncio que Não Termine". Mas as lições de redenção e/ou tentativas de reconciliação com si mesma a transformam numa escritora de autoajuda das mais banais, com direito a luta por direitos humanos e contemplação de olmos e horizontes breguíssimos –e a coisa só faz piorar quando uma tal de Nona Fina é invocada a dar seus pitacos metafísicos.
Julia e Theo conseguem, cada um a seu modo, fugir do cativeiro. Depois de um tempo o casal se reencontra, entretanto Julia não é mais Ingrid, e Theo, à exceção "dos punhos cerrados que traem uma violência surda", não é mais Eladio, e Eladio não é mais Lucho.
A Linha Azul |
Ingrid Betancourt |
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Ingrid Betancourt está condenada a sofrer, mas com "dignidade": parece que é isso o que "Linha Azul" quer dizer. Ela sofre por ter recuperado a liberdade e por ter perdido Lucho para sempre. Sofrem os leitores mais exigentes, sofre o resenhista, e sofrem todos nesse híbrido que está longe de ser um depoimento, e que não convence como ficção.
MARCELO MIRISOLA é autor de "O Herói Devolvido" (34) e "Charque" (Barcarolla)
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