Mostra revela Godard publicitário, com comerciais de jeans e cigarros
Houve uma pausa para os comerciais na programação de "Jean-Luc Cinéma Godard", a mais completa retrospectiva do cineasta, em cartaz até 2/12 em SP, Rio e Brasília.
Cinco das 125 obras selecionadas revelaram um dos personagens menos conhecidos de sua trajetória: Godard, o diretor de filmes publicitários.
Uma hora a fatura chega. Até na casa do franco-suíço de 84 anos que virou sinônimo de cinema "cabeçudo" e se engajou, nos anos 1960, no coletivo de filmes anticapitalismo Dziga Vertov. Godard também precisa pagar suas contas.
É uma explicação para ter topado dirigir propagandas de jeans, loção pós-barba, cigarro e Nike, segundo Michel Witt, autor de "Jean-Luc Godard, Cinema Historian".
As três primeiras passaram na mostra em outubro. Lançado na semana passada, o catálogo "Godard Inteiro ou o Mundo em Pedaços" (ganha-se um a cada sete ingressos comprados) traz ensaios sobre cada uma delas.
Já a série para a Nike, dos anos 1990, "está em litígio judicial e proibida de passar", diz o curador Eugênio Puppo.
Por que o homem que já definiu cultura como "álibi do imperialismo" abraçaria logo a publicidade, um dos pilares do "american way of life"?
"O que ele fez, fez por: 1) dinheiro; 2) porque o projeto o atraiu; 3) para facilitar outras coisas", afirma Witt à Folha.
Exemplo: usou o cachê de filmes encomendados por dois estilistas franceses em fantasias para "Rei Lear" (1987). Com Woody Allen, o longa mostra William Shakespeare Junior 5º tentando recriar a peça-título num mundo artisticamente estéril, pós-Chernobil.
BARBADA
A primeira propaganda é de 1971. Cofundadores do grupo Dziga Vertov, Godard e Jean-Pierre Gorin fecharam negócio com a agência de publicidade Dupuy Compton. Sugeriram vender mais loções pós-barba Schick assim: um casal briga histericamente enquanto, no fundo, um locutor dá notícias da Palestina. Só fazem as pazes quando o homem passa o bálsamo nas bochechas.
" Com orçamento para uma semana e filmado em um dia, 'Schick' foi o único produto entregue pela dupla, que aproveitou o dinheiro para viabilizar projetos próprios", escreve Leonardo Bomfim, mestre em comunicação pela PUC-RS, no catálogo da mostra.
Nos anos 1980, Godard esteve na moda. Realizou filmes para uma linha de jeans prêt-à-porter, a Closed. Num deles, uma atriz diz "non" quando aparecem telas de Velásquez e Toulouse-Lautrec, e "oui" a modelos usando jeans.
Cada cena "é um haicai por vezes burlesco (passa-se com ferro quente um jeans sobre as pernas de quem o veste)", diz Cyril Béghin, da redação dos "Cahier du Cinéma", em seu texto sobre o comercial.
Nos anos 1990, a marca de cigarros Parisienne contratou Godard e os colegas David Lynch, Emir Kusturica e irmãos Coen. O franco-suíço fez sua vinheta em parceria com a mulher, Anne-Marie Miéville.
O que se vê: um skatista dribla maços gigantes, um homem descalço pisa num chão cheio de pacotes, outro segura um livro. Ouve-se Godard ler "Bérénice", de Jean Racine.
Escreve o crítico Luiz Carlos Oliveira Junior: "Assim encenada, a propaganda já traz embutida uma crítica ao fetiche da mercadoria, numa típica dialética godardiana".
"Tem cineasta que fala: 'Quem faz publicidade nunca fará cinema'. Mas Godard é um capítulo à parte, deixa sua marca em tudo o que faz, um viés político", diz o curador.
Outros protagonistas do cinema autoral também o foram. Nos anos 1980, Federico Fellini fez um comercial para a Campari. Em 1951, com duas ex-mulheres, uma atual e o sexto filho a caminho, Ingmar Bergman aumentou o contracheque com um filme sobre o sabonete Bris –que, em português, quer dizer brisa.
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