Atores negros protestam ao fim de espetáculo sobre apartheid na MITsp
Miguel Arcanjo Prado/UOL | ||
Atores negros protestam ao fim de espetáculo sobre apartheid na MITsp |
Um grupo de cerca de 20 artistas negros protestou na plateia da Sala Jardel Filho, no Centro Cultural São Paulo, na noite de sexta-feira (4).
A manifestação surpreendeu o público que havia terminado de assistir ao espetáculo-show "Revolting Music - Inventário das Canções de Protesto que Libertaram a África do Sul", do músico sul-africano Neo Muyanga, parte da MITsp (Mostra Internacional de Teatro de SP).
No concerto solo, Muyanga recriou músicas que encorajaram sul-africanos no período do apartheid, o regime de segregação de Estado entre negros e brancos que vigorou em seu país entre 1948 e 1994.
No momento em que o público começava a deixar o espaço, as caixas de som passaram a tocar em alto volume o verso "a cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras", da música "Capítulo 4 Versículo 3", do grupo de rap Racionais MC's.
Logo, surgiram os atores negros, vestidos de preto, na saída da plateia. Eles ficaram parados, encarando o público, enquanto a música era tocada. Os espectadores ficaram paralisados.
Caio Campos/Divulgação | ||
O músico sul-africano Neo Muyanga durante o espetáculo |
Os artistas pediram que os espectadores se sentassem novamente e tomaram o microfone. Então, cada um deles falou sobre racismo, preconceito e opressão, enquanto percorriam os corredores do teatro, cercando a plateia.
"Isso aqui é realidade. Não é performance. É mais um grito", disse uma das atrizes. Nos discursos, o grupo acusou a sociedade brasileira de fazer há séculos "um genocídio da população negra".
Um dos atores contou quantos negros havia na plateia de 321 lugares: "Dezesseis ao todo. Essa é a cota?".
Uma atriz negra atacou o preconceito na própria classe artística. "O que você pensa quando aceita pela terceira vez o papel de empregada ou de ladrão? Eu não sou da paz, porque a paz é muito branca, muito pálida."
Ao fim, os artistas voltaram ao fundo da plateia e levantaram os braços esquerdos com o punho cerrado, gesto histórico de demonstração de força do movimento negro.
Muitos dos atores que participaram do protesto choraram, e quase todos os 16 negros na plateia também levantaram o punho cerrado junto aos artistas. No restante do público, porém,foram poucos os que seguiram o gesto.
O ator Eugênio Lima, diretor da ação nomeada "Em Legítima Defesa", disse que "já imaginava que isso fosse ocorrer". Para ele, o fato de muitas pessoas não terem se solidarizado com o gesto "denota e expõe essa fratura" social existente no Brasil. "Construímos a ideia de estar em legítima defesa, colocando a vida, o corpo e as ideias em ação."
A maioria dos atores participantes do protesto havia sido selecionada para o elenco da peça "Exhibit B", do diretor sul-africano Brett Bailey, que participaria da MITsp. O espetáculo foi acusado de racista pelo movimento negro.
Na peça, que também provocou polêmica na Europa, o diretor expõe atores negros acorrentados para recriar zoológicos humanos existentes na Europa no século 19.
Os diretores da MITsp, Antônio Araújo e Guilherme Marques, afirmaram à reportagem que o cancelamento da peça ocorreu por uma questão de custos, negando qualquer tipo de censura ou influência dos patrocinadores do evento nesta decisão.
"Essa ação partiu da ideia dos próprios atores diante da impossibilidade de eles dialogarem com a sociedade. Nós chegamos para o Antonio Araújo e o Guilherme Marques e dissemos que não havia condições políticas de que 'Exhibit B' viesse", lembrou Lima.
"Com isso, o discurso dos atores ficou invisibilizado. E eles me disseram 'a gente precisa falar'", conta Lima.
APOIO
Diretor executivo da MITsp, Guilherme Marques afirmou que o evento apoiou a ação, incorporada à programação do festival, e deu condições técnicas para que ela ocorresse.
"A curadoria escolheu não calar essas vozes dos atores que fariam o 'Exhibit B'. E foi incrível. Conseguimos esse diálogo entre o espetáculo do Neo Muyanga e esse protesto", afirmou ele.
As estudantes Camila Reginato Myrrha e Vitória Saragiotto, ambas brancas, se disseram emocionadas ao sair da Sala Jardel Filho. "Há muito tempo estudo o assunto, mas ver essas pessoas dizendo 'eu não me calo' muda tudo", afirmou Myrrha. Sua colega concluiu: "É um tema tão atual, mas infelizmente as pessoas fecham os olhos para isso e não querem mudar".
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