crítica
Nova obra de veterano Godofredo de Oliveira Neto é boa surpresa
A mais recente obra de Godofredo de Oliveira Neto é uma enorme e positiva surpresa. Autor experiente e premiado, vem tendo suas obras publicadas no exterior com sucesso de crítica e satisfatória repercussão.
Tendo como marca a erudição de quem acumula a função de professor universitário, Godofredo revela sempre especial habilidade na construção de narradores e na transposição de fatos de lastro histórico para romances.
"Grito", porém, difere de tudo que o autor já escreveu. Se a feliz condução do texto pelo narrador próximo ao leitor continua, toda a estrutura da obra é inédita.
Vinte e nove atos formam a obra, mas não é diante de um texto dramatúrgico que estamos. As cenas se alternam com a narrativa, ou no texto em prosa onde intrometem, mesclando-se. A narradora é também uma depoente que recria memórias. O narrado é encenado. Os personagens são ao mesmo tempo atores, diretores e autores das cenas que se sucedem. O dramático se desfaz em teatralidade pós-dramática, mas aceita ainda intervenções brechtianas.
Quase toda a ação se passa entre o apartamento quarto e sala em Copacabana de uma ex-atriz de 82 anos, cheia de memórias dos 60 anos de uma carreira de sucesso nas artes cênicas, conhecendo ainda de cor os principais momentos do cânone dramatúrgico, e a quitinete no mesmo prédio onde mora ninguém menos que Fausto.
Fausto é um belo negro de 19 anos que pretende ser autor teatral e ator. Com a velha senhora aprende as artes do ofício, partilha falas dos diversos faustos da história literária. Juntos, constroem um mundo à parte no pequeno conjugado transformado, nos momentos em que os dois formam plateia e palco, em Sala Ifigênia de Sá Sintra, nome que homenageia a irmã de Fausto que nascera morta.
Isso é tudo que se sabe do jovem que circula sem camisa e lança um berro que abala o prédio quando algo de novo surge em sua vida.
Duas formas de sedução unem os personagens tão díspares, enchendo a cada encontro o espaço que partilham de afeto e arte.
Na alternância de formas de escrita cabem intromissões sem qualquer solenidade de citações ou recorrências que vão do Fausto de Goethe a Shakespeare. Machado de Assis mescla-se ao texto sem avisar.
O mais interessante nas recriações de emoções que o leitor ou espectador experimentam diante do repertório evocado é que não há no recurso qualquer didatismo, qualquer exibição de erudição démodé. É o "extraordinário mundo do teatro", com os recursos que o drama partilha com a Ópera, que cria a atmosfera de prazer dividido entre a velha e o jovem.
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A chamada realidade, porém, existe, mesmo se deixada de fora como forma de conviver com a velhice de uma ou o fracasso recorrente do outro. Como diz a antiga atriz: "Os homens padeceriam de penas bem menos intensas se não dedicassem todo o poder da imaginação a lembrar sem cessar dos seus males, em vez de tornar mais suportável o presente".
O real, porém, é o incontornável, é o que não se pode suportar, e o drama findará em inevitável tragédia.
BEATRIZ RESENDE é professora da UFRJ e pesquisadora do CNPQ e da Faperj
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