CRÍTICA
Nobel, Svetlana dá voz autêntica a mulheres contra Hitler
Sergei Grits/Associated Press | ||
Svetlana Alexievich, escritora vencedora do prêmio Nobel |
"Não se pode mais narrar", escreveu Theodor Adorno (1903-1969) poucos anos após o fim da 2ª Guerra Mundial. Um dos efeitos da guerra para a literatura foi acabar de vez com a ilusão de um mundo comum, de uma narrativa única para a humanidade. Mesmo a não ficção, que poderia oferecer uma saída objetiva para o impasse, se viu engasgada com a artificialidade do relato estruturado em torno de um enredo.
Pois o que se perdeu ao longo do século 20 é o que melhor define a escrita da autora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch: autenticidade. Foi preciso que o prêmio Nobel a revelasse ao resto do Ocidente em 2015 e a colocasse em igualdade com o que move hoje a escrita literária.
Ria Novosti/AFP | ||
Militar soviética em Berlim, em 1º de maio de 1945 |
USAVAM CUECAS
Em "A Guerra Não Tem Rosto de Mulher", Svetlana costura, 40 anos após os eventos, relatos de soviéticas que combateram na guerra contra o Exército de Hitler –estima-se que foram 1 milhão.
Eram enfermeiras, tratoristas, sapadoras, cirurgiãs, cozinheiras, lavadeiras, e também soldados da infantaria e cavalaria, atiradoras, operadoras de baterias antiaéreas, aviadoras, marinheiras.
Em geral, se alistaram voluntariamente, às vezes contra a vontade dos comandantes do Exército Vermelho, algumas no início da adolescência, com 13 anos. Vestiam fardas masculinas. Usavam cuecas. Cortavam tranças e cachos bem curtos.
Marchavam enquanto "começaram a aparecer manchas vermelhas na areia... Um rastro vermelho... Bem, era a...", diz uma das veteranas. Outras deixaram de menstruar por quatro anos, e ganharam cabelos brancos antes dos 20.
As que sobreviveram, voltaram às suas cidades de origem e foram alvo de preconceito e desprezo: eram as "p... do front. Cadelas militares...", envergonhavam as famílias, não arranjavam emprego, muitas não se casaram.
A Guerra Não Tem Rosto De Mulher |
Svetlana Aleksiévitch |
Comprar |
Como exigência da autenticidade narrativa, parece ser apenas cabível um livro de gênero híbrido como esse: é reportagem, colagem, diário, mas também quase um romance, polifônico e de múltiplos enredos. Não seria possível que apenas se registrasse as histórias terríveis que essas mulheres guardaram por décadas (uma mãe que afoga o bebê de colo que chora para não revelar aos alemães a posição do grupo; um soldado que pega um bebê e o mata batendo-o contra uma barra de ferro na rua).
Também não se poderia reescrever em outro contexto aquilo que viveram (o cheiro de sangue que não desaparece nunca, a aversão pelo vermelho, a tortura, a fome, a humilhação). Suas histórias estão no limite do humano. Não há espaço para interpretações.
Ainda que antecipe escolhas da literatura contemporânea, "A Guerra Não Tem Rosto de Mulher" é marcado pelas preocupações e visões de mundo do século 20 na União Soviética (a primeira versão foi publicada em 1985 e atualizada no começo dos anos 2000). Mas o século passado não estaria completo sem ele. Encontramos em Svetlana Aleksiévitch uma nova maneira de olhar para trás, e de narrar o presente.
ROBERTO TADDEI é autor de 'Terminália' (Prumo/Rocco, 2013), entre outros
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade