Análise
Michel Butor foi autor realista sem realismo
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O escritor francês Michel Butor no escritório de sua residência, em Nice, em 1970 |
Muito já se falou das inovações estilísticas do francês "A Modificação", narrado na segunda pessoa do plural ("vous"). Mas compreender o legado literário de seu autor, Michel Butor, morto na quarta-feira (24), aos 89 anos, exige um olhar ainda mais retrospectivo, que supera o círculo reunido nas décadas de 1950 e 1960 pela editora Éditions de Minuit –retornemos a Honoré de Balzac, ainda na primeira metade do século 19, e compreenderemos de fato os méritos de "A Modificação".
Germes das principais tendências realistas e naturalistas da literatura francesa, as dezenas de narrativas que compõem "A Comédia Humana" criaram um modelo de romance tão estável quanto difícil de ser superado.
Publicadas originalmente sob a forma de folhetins, suas histórias eram aguardadas pelo restrito público alfabetizado de então, que chegava a se acomodar nas salas de suas casas para ler cada episódio em conjunto, familiarmente.
O segredo, conforme exaustivamente apontado pela crítica francesa, era seu narrador. Entidade onisciente, como um demiurgo sabedor de todos os gestos, os sentimentos e as pretensões dos personagens, revelava-se capaz de criar as expectativas que, mais adiante, viriam a atender, surpreender ou frustrar. Tudo de modo seguro, em linguagem fácil para aqueles que, na época, liam. Ou ainda, em uma analogia, apesar de anacronismos: como uma telenovela dos nossos dias.
Somam-se a isso os personagens balzaquianos, sobre os quais tanto se debruçou o filólogo Erich Auerbach. Desprovidos de profundidade psicológica, não são indivíduos, mas somente metonímias dos grandes tipos sociais que o monarquista Balzac viu se multiplicarem após a Revolução Francesa, no advento da modernidade. O usurário Gobseck, a pensionista Madame Vauquer, o avaro burguês Goriot e assim por diante.
A grande questão que passou a se impor já com a Belle Époque é o quanto de realismo de fato Balzac oferecia. E essa dúvida –o quão real seria o realismo de Balzac e seus herdeiros–, caiu como uma luva nas mãos dos autores do Nouveau Roman.
A realidade humana, especialmente após Proust e a filosofia do tempo psicológico de Bergson, é instável, volúvel, inapreensível. Se o que se busca é o real, então o romance deve ser o mais particular e movediço possível.
Daí a relevância do pronome "vous" (traduzido por Oscar Mendes, em 1958, como "tu") em "A Modificação". Pode-se ler tanto o diálogo interior do protagonista Léon Delmont consigo mesmo ou a máxima incorporação do leitor à obra. E aí o nível de individualidade (ou de realidade) atinge seu ápice. Porque cada leitor é único.
Vide a abertura da obra, quando Delmont, alto executivo da fábrica italiana de máquinas de escrever Scabelli, entra em um trem com destino a Roma para um encontro com a amante Cécile: "Você pisou com o pé esquerdo sobre a canaleta de couro e, com seu ombro direito tentou, em vão, empurrar um pouco mais a porta de correr".
Afinal, é Delmont ou nós, leitores, quem empurra a porta? Essas perguntas são traiçoeiras. Não há respostas excludentes entre si. Personagens e leitores se confundem, como dita a real experiência literária.
Essa era a esperança do crítico Bernard Dort em 1955, quando cunhou o nome "Nouveau Roman". Dizia ele com entusiasmo: "O romance é novamente possível. Um romance sem más intenções, nem usurpação de uma divindade impossível. E é desse romance que, talvez, nascerá a verdade de nossa literatura".
Entenda-se: um romance que, incorporando as inovações literárias da virada do século, pudesse aprofundá-las e afastar-se do modelo narrativo de Balzac. Tentando distanciar-se do realismo, talvez Michel Butor tenha sido um dos mais verdadeiramente realistas escritores franceses.
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