CRÍTICA
Exigente, 'Sínthia' faz belíssimo retrato dos ecos da ditadura
Com quase três horas de duração, a peça "Sínthia", da Velha Companhia, é uma experiência exigente, mas nunca enfadonha. O belíssimo texto de Kiko Marques, que também assina a direção, aborda com grande densidade dramática e simbólica o "silêncio político e o silêncio dos corpos" na ditadura militar pós-64, e seus ecos até hoje, pelo prisma íntimo de uma mãe e seu filho.
Marques, como no premiado "Cais ou da Indiferença das Embarcações", retrabalhou reminiscências pessoais. Ele nasceu um ano depois do golpe militar, seu pai era oficial da PM carioca; sua mãe tinha dois irmãos homens e dois filhos homens antes dele, e o esperou como menina.
Assim também o personagem a quem ele dá na vida no palco: Vicente, compositor e professor de música. Sua mãe Maria Aparecida o chamava, antes de nascer, de "Cíntia", tamanha sua certeza do sexo do bebê –metáfora da feminilidade que a mãe gostaria de resgatar em si própria, para além do cárcere doméstico.
Lenise Pinheiro/Divulgação | ||
Henrique Schafer e Alejandra Sampaio em 'Sínthia' |
"Sínthia" é o nome que Vicente se dará ao perceber, na casa dos 50, que, de fato, era mulher, ainda que no corpo de um homem, e ir ao encontro da mãe, agora ameaçada por um agressivo tumor.
Cabe destacar esta mãe, desdobrada em duas fases de vida. A mais velha (Denise Weinberg, brilhante) tem traços rígidos, masculinizados, de uma matriarca que carregou a família de homens nas costas após o enlouquecimento e morte precoce do marido.
E a mais jovem (Alejandra Sampaio), mais delicada, é retratada nas contradições de alguém que é vítima, mas também de certo modo cúmplice, da cultura autoritária que cala as ruas e os lares.
Ela sonha, depois da quarta gravidez, em afinal ter tempo para si própria, fazer faculdade. Educa os filhos com rigor, castigando-os, se preciso. E se esforça, entre tantos sacrifícios e disciplinas, em acreditar que o marido, embora militar, não tem nada a ver com as torturas e assassinatos políticos que a horrorizam.
Se, ao longo da peça, suas ações correm em paralelo, há um momento de confluência, na magistral cena em que, no interrogatório sobre os crimes do marido perante a Comissão da Verdade, "Dona Aparecida" simbolicamente se levanta para apagar, ao lado da jovem de outrora, os nomes de "irmãos" (vítimas da tortura) pintados com fezes numa parede pelo marido demente.
Criada para a peça por Tadeu Mallaman e executada pelo quarteto de cordas Quadril, a sublime "Sinfonia da Compaixão" de Vicente, inspirada na relação com o pupilo Conrado, e sua experiência de "virar mulher" terão uma dimensão arquetípica de redenção, para o personagem, para sua mãe e mesmo para uma democratização.
Esta, para ser efetiva, precisa arejar todos os porões, inclusive aquele em que prende, no quartel patriarcal, o feminino profundo, a dimensão de intuição e compaixão, latente em homens e mulheres.
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