Crítica
'Últimos Dias no Deserto' substitui o sermão ao rever episódio bíblico
Em meio à onda de filmes religiosos, na qual o encanto do mito foi substituído pelo sermão, "Últimos Dias no Deserto" aparece como um oásis no meio do Saara.
O longa recria com liberdade o período de 40 dias em que Jesus ficou fora do mundo. Afastado, ficou, primeiro, exposto às indagações. O diabo também aproveitou a brecha para tentar o adversário.
O episódio é sempre reconstituído nas centenas de filmes sobre a paixão de Cristo, mas costuma ser tratado de modo anedótico, sem dar tempo de trazer à tona o questionamento espiritual que a solidão e o encontro com a figura negativa do demônio provocam.
Divulgação | ||
Ewan McGregor vive Jesus em ''Últimos Dias no Deserto'' |
O roteiro de Rodrigo García, que também dirige "Últimos Dias no Deserto", não tem a preocupação de ser fiel aos relatos evangélicos. Contudo, para evitar reações de intolerância, como as provocadas por "A Última Tentação de Cristo" (1988), aborda o tema da humanidade do filho de Deus sem ousar representar o desejo como aspecto determinante da condição humana.
Isso não impede o diretor de especular sobre a ambivalência do divino no homem, do mesmo modo que examinou a complexidade das personas sexuais com sobriedade em "Albert Nobbs" (2011).
Aqui, Jesus (Ewan McGregor) vaga numa paisagem incerta, o que só intensifica a dúvida acerca de quem ele é e de qual deve ser sua missão.
O diabo surge a primeira vez na forma de uma mulher, aparição que pode ser maquinada pelo mal ou projeção fantasmagórica produzida pelo estado de solidão.
Quando encontra uma família que vive por ali, as tentações assumem a forma de duplos, provocações que também não se distinguem dos devaneios e dos sonhos.
García acompanha esse périplo de indeterminações com segurança, retratando Jesus não como uma divindade suprema, mas como um homem em busca de si.
A temática do corpo, em vez de resumir-se ao suplício na cruz, apresenta-se na sede e no esforço físico, assim como nas situações de doença e de morte que o personagem tem de enfrentar.
O embate de vontades entre o filho e o pai da família que vive no deserto é outro conflito, que simboliza, de uma perspectiva problemática, a relação de Jesus e Deus.
Ao reinterpretar o episódio bíblico, "Últimos Dias no Deserto" recupera para o cinema a função da imaginação, tão essencial ao sentimento religioso quanto a própria fé.
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