CRÍTICA
Identificação com marido é ponto forte do longa 'O Silêncio do Céu'
O medo é o território de Marco Dutra. O medo e os fantasmas que o seguem incansavelmente. Mario é, portanto, um personagem a caráter para o cineasta: ele não tem medo de uma coisa ou outra: o medo é sua pele.
Dito isso, "O Silêncio do Céu" se abre com uma cena de estupro (aliás, não parece ser a especialidade de Dutra: não é boa nem ruim: parece feita por obrigação). O estupro é de Diana, a mulher de Mario, que assiste à cena, mas é incapaz de reagir.
Desde então, Dutra cria uma estranha atmosfera de horror em torno desse homem, de sua cidade e de seu casamento. Um estranho casamento, a partir de então, onde a mulher finge não ter sido estuprada e o homem finge não saber de nada.
Mas a cidade não será alheia a isso: a Montevidéu que o filme constrói é a um tempo estranha e pacata. Não raro uma cidadezinha do interior onde nada acontece e tudo pode acontecer.
O horror do filme é, portanto, de sugestão, à maneira da célebre série de Val Lewton para a RKO. Ou dos filmes de David Lynch, de certa forma.
Quanto a Mario, o interessante, o único nele é o absoluto de seu medo. Todos temos medo, e isso nos aproxima da vida de terror do personagem. Ele é tão intenso que Mario cria uma segunda personalidade que encobre o medo (mas não o abole) a fim de, simplesmente, existir.
Esse é um belo ponto de identificação que o filme cria: todo espectador pode produzir uma representação de si mesmo melhor do que se crê intimamente. Esse personagem é que lhe permite existir.
No caso de Mario, o que mais interessa é a intensidade dessa segunda pele. Assim como o medo lhe corrói a alma, essa personalidade postiça, arbitrária (mas por que a primeira não seria?) o toma na segunda parte do filme.
Ali ele deixará de ser o indefeso que é. A rigor, ele não tem saída: precisa optar entre cultivar o medo e perder a família ou abdicar do medo e recuperar a família. Desde então, Mario se dispõe a investigar pessoalmente o que de fato aconteceu a sua mulher.
É como se, desde então, um segundo filme começasse e o terror desse lugar ao "thriller" policial: Mario age como um detetive determinado, embora Marco Dutra não abdique do ambiente de terror. Ainda aqui ele responde pelos melhores momentos dessa parte do filme. É quando, por exemplo, Mario irá a um viveiro de plantas.
É outro lugar pacato e misterioso, onde tudo pode acontecer. É lá o coração de sua busca. E lá encontrará a mãe dos estupradores: estranha, magnífica (e manca) pessoa.
É verdade que a trama se torna mais convencional ao se aproximar do desfecho. Até lá, no entanto, o espectador já terá se encantado bastante com o medo e o destemor –o seu e o de Mario: ser tão parecido com o espectador em certos aspectos não deixa de ser um ponto forte de "O Silêncio do Céu".
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