Crítica
Miguel Falabella não combina com o Deus da Broadway
Não se deve buscar aprofundamento espiritual em "God", no original "An Act of God", um ato de Deus, comédia que estreou em Nova York em 2015. O autor é David Javerbaum, que escreveu para o lendário "Daily Show" de Jon Stewart por 11 anos.
A estrutura não é muito distante da do programa, que era uma paródia de telejornal: Deus aqui é como um âncora que aborda criticamente a sociedade e a política contemporâneas, com apoio pontual de assistentes, no caso, os arcanjos Gabriel e Miguel.
Está mais para um amontoado de tiradas, até por ter nascido de um perfil de Twitter do autor. São piadas contrastando a religião cristã, sobretudo católica, com a realidade comportamental.
Miguel Falabella não deixa de ser Falabella ou a caricatura de si mesmo. Deus desce à Terra na pele do ator, que se autoelogia para efeito cômico, repetindo a fórmula de que abusa desde seu primeiro monólogo, "Louro, Alto, Solteiro Procura..." (1994).
Desgostoso da humanidade, Deus-Falabella traz novos dez mandamentos, engraçados na forma como são apresentados, mas de mensagem mais ou menos séria. Como "Separar-me-ás do Estado", ou seja, nada de misturar igrejas com poderes públicos.
Muitos dos novos preceitos tratam de sexualidade e, de maneira geral, são liberalizantes, na direção contrária dos preceitos cristãos. Não por acaso, a peça é bastante elogiosa do papa Francisco, em confronto com o anterior, Bento 16. As piadas com este último são especialmente críticas.
É Javerbaum falando, mas "God" traz muito que se pode creditar a Falabella, que é tradutor, adaptador e diretor.
Seu personagem tem a ascendência sobre o público típica do ator. Muito também de suas "boutades", como isso ou aquilo ser "de pobre". É politicamente incorreto e abertamente contrário ao liberalismo nova-iorquino do texto. Não casa muito bem.
A origem de Falabella como "performer" é no besteirol, ao lado de Guilherme Karam, vem daí seu humor popular e agressivo. Ao falar de homossexualidade, seu tom é completamente diverso e por vezes arrisca ser mais ofensivo às causas que Javerbaum defende do que à Igreja Católica.
Mas nem Javerbaum nem Falabella são tão graves assim. A peça se basta no riso solto, na comédia. O que tem de crítica é pouco controverso ou, pelo menos, assim era até a mais recente onda conservadora, nos EUA e no Brasil.
No palco do mesmo teatro Procópio Ferreira, era até inevitável: há muito de Caco Antibes, personagem do ator no programa "Sai de Baixo" (Globo, 1996-2002), em diálogo direto com o público, que está ali atrás disso mesmo.
A produção visa aparentemente uma turnê, como se observa pelo pequeno elenco e até pelo cenário, que reproduz o original do Studio 54 e se encaixa em qualquer palco. É uma encenação que vai atrás de seu público e tenta passar a ele alguma mensagem.
E é curioso que o mesmo teatro tenha servido de palco, até outubro, para um espetáculo que pode ser visto como o oposto deste "God", o musical "Os Dez Mandamentos", da Igreja Universal.
Ambos têm inspiração na Broadway e, mais importante, na sociedade americana, seja pelo liberalismo ou pelo neopentecostalismo. E moralmente reproduzem um conflito que vem de lá e é puritano à esquerda e à direita –o que tanto Falabella quanto a equipe do musical trataram de, brasileiramente, escrachar.
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