'Não houve transição', diz ex-diretor da Biblioteca Mário de Andrade
Dias após ter deixado a direção da Biblioteca Mário de Andrade, em que esteve por quatro anos, o professor Luiz Armando Bagolin volta à avenida São Luís, na região central de São Paulo.
O artista plástico, com mestrado e doutorado em filosofia pela USP, onde volta a lecionar, sentou-se com a Folha num café em frente à BMA para falar sobre a mudança de poder da maior biblioteca do Estado. "Não houve transição."
O ex-diretor afirmou temer que projetos, como a abertura 24 horas do local e um plano de digitalização do acervo em que trabalhou por três anos, sejam esquecidos na falta de diálogo.
O editor Charles Cosac foi convidado e aceitou pela gestão João Doria (PSDB) como futuro novo dirigente da Mário de Andrade.
Procurado para saber sobre seus planos para o órgão, ele não se pronunciou.
A Secretaria Municipal de Cultura tampouco quis comentar as afirmações de Bagolin. Leia abaixo trechos da entrevista.
Claudio Belli/Valor | ||
Luiz Armando Bagolin na Biblioteca Mário de Andrade, que passa a ser dirigida por Charles Cosac |
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Folha - Como foi a transição do poder na biblioteca?
Não houve transição, para a surpresa de todo mundo. Recebi um telefonema, logo depois do Natal, me dispensando. Solicitei então uma reunião presencial com o secretário [municipal de Cultura, André Sturm]. Foi marcada uma reunião no dia 28, no horário que ele estipulou. Mas ele não me recebeu. Foi repetido aquilo que havia sido dito no telefonema: "Muito obrigado, até logo". Eu perguntei mais uma vez sobre a transição e eles disseram que não era para eu me preocupar com isso. A gente conseguiu democratizar o acesso, é a única biblioteca da América Latina aberta 24 horas por dia. Temo que esse trabalho se perca.
Que programas ficam em risco com essa falta de diálogo?
Muitos, mas o principal é o projeto de digitalização do acervo, com uma plataforma única, alimentada por dez bibliotecas diferentes do país e ancorado na Mário de Andrade. Sete bibliotecas, como a Estadual do Acre, a de Manaus, a de Recife e a de Fortaleza já haviam topado participar do CPN.
A sigla significa Coleções Periódicas Nacionais, porque a maior quantidade de documentos a serem digitalizados inicialmente é de periódicos.
Começaríamos por eles porque os periódicos são mais frágeis, mas principalmente porque eles contam a história da região onde circularam. O BNDES havia se disposto a financiá-lo com R$ 10 milhões, como fundo não reembolsável.
Esse projeto levou três anos para ser desenhado, e estava prestes a ser assinado. Começaria a funcionar no início de 2018.
O senhor tem mais algum plano para tentar o diálogo com a nova administração?
Não existe plano nenhum. Eu me coloquei à disposição. Só me resta torcer para que todos os projetos dos últimos quatro anos não sejam descontinuados. Isso afetaria sobretudo o público, que se acostumou a atividades gratuitas e públicas.
Como o senhor vê o modelo de organização social, que a prefeitura afirma querer expandir na administração de bibliotecas?
Não tenho nada contra o modelo de OS. Mas acho que, se puder ser por administração direta, com poucos recursos e uma equipe pequena e eficiente, isso é muito melhor. A gestão da Mário de Andrade nos últimos quatro anos prova que é possível fazer a gestão de um órgão cultural por administração direta. O modelo de OS não deu certo para o Theatro Municipal, por exemplo, que só no ano passado consumiu R$ 120 milhões, contra R$ 9 mi da MBA.
O secretário municipal de Cultura afirmou que quer transformar as bibliotecas em "mini-MIS", seguindo o modelo do Museu da Imagem e do Som, que ele administra. Como vê isso?
O que me preocupa é essa coisa de ter uma marca e querer deixá-la em todo lugar. No universo pop, tudo é reproduzível, Walter Benjamin já dizia isso: é um universo sem alma.
Não posso tratar o leitor como alguém com carência de leitura. Não dá para reproduzir o modelo do MIS em todo lugar, ele não abarca toda a diversidade da cultura. O MIS não é um pacote de batatinha frita que dá pra colocar em qualquer canto.
Quais são os desafios futuros da Mário de Andrade?
Digitalização. A conta não fecha. Você tem cerca de 4 milhões de itens na Mário de Andrade. Juntando os acervos das outras bibliotecas públicas, somam-se 6,5 milhões. São Paulo tem 12 milhões de habitantes. Se cada um deles resolver emprestar um livro, 4 milhões ficariam sem. Como se resolve esse déficit, construindo mais bibliotecas? Não, criando uma biblioteca digital.
A seu ver, a abertura 24 horas corre risco, ou já está sedimentada e não pode ser revertida?
Ela não está bem sedimentada. As autoridades ficavam me cobrando uma inauguração oficial, mas eu sempre queria fazer mais testes.
Além do empréstimo e retirada de livros, queria que houvesse uma programação cultural à noite, um diálogo com o entorno. Esses testes mostraram que a biblioteca é mais segura à noite do que durante o dia. É impressionante.
Os furtos de celular e laptop acontecem durante o dia. É plenamente possível ao novo gestor continuar esse trabalho. Fica uma equipe que eu treinei, eu montei e tem todas as condições de dar as informações necessárias ao novo diretor, para que esses projetos sigam.
Como vê a indicação do editor Charles Cosac para o cargo?
Charles é um querido amigo. Uma pessoa de grande sensibilidade. Sei que dará o seu melhor para a Biblioteca Mário de Andrade. Desejo-lhe muita sorte e sucesso.
Está feliz com a volta à universidade?
A minha área de pesquisa é a arte do renascimento. Me sinto feliz por ter colaborado com o renascimento da Mário de Andrade, mas agora volto à minha pesquisa, com muitos planos. O interesse por gestão de equipamentos públicos é um interesse antigo e que se mantém.
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