RuPaul vê reality de drags, que estreia no Brasil, como manifesto político
RuPaul não é uma diva. "Essa palavra se banalizou demais", diz a drag queen mais famosa do planeta. "É um termo que detesto, que só quer dizer qualquer um com pretensão de subir num palco."
Mais do que pretensão -e isso ele diz há nove anos na televisão- palcos, câmeras e passarelas exigem "carisma, singularidade, atitude e talento", atributos com letras iniciais que, em seu célebre bordão em inglês, soletram um sonoro "cunt" -ou boceta mesmo.
Mas não são vaginas ou pênis, no sentido biológico da coisa, que estão no centro de "RuPaul's Drag Race" -seu reality show está agora na nona temporada nos Estados Unidos e acaba de estrear no país na tela do Comedy Central, que ainda mostra os episódios do ano passado.
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RuPaul, apresentador do reality 'RuPaul's Drag Race', que estreia agora no Comedy Central |
"Não diria que o objetivo de uma drag queen é se parecer ao máximo com uma mulher", ele esclarece. "Estamos falando de uma feminilidade sintética. Mulheres de verdade não se vestem desse jeito. Isso é um comentário sobre a ideia do feminino. E há uma grande ironia, quase uma traição dentro de uma cultura machista, de um homem rejeitar padrões de masculinidade."
Essa rejeição, aliás, é plástica e fantástica, com vestidos inimagináveis, perucas que desafiam a gravidade e maquiagem capaz de transformar todos em estrelas de Hollywood.
Usina de produção de memes hilários, a competição comandada pelo californiano para revelar a próxima "superstar drag" da América também teve outro efeito além de se firmar como plataforma de ascensão da cultura das queens ao auge da popularidade.
Nos últimos anos, o reality vem se mostrando cada vez mais político, virando uma arena em que tabus como preconceito e crimes de ódio, como o atentado que matou 50 pessoas numa boate gay nos Estados Unidos no ano passado, são discutidos entre plumas e paetês.
"O drag sempre foi político, só que no nível da emoção", diz RuPaul. "Pessoas nesse planeta são criadas num sistema que as força a escolher uma identidade e se prender a ela. O drag é o oposto disso, ele afirma que você pode mudar e ser o que quiser a cada minuto. E isso é político e revolucionário."
Na ressaca da eleição de Donald Trump à Casa Branca, RuPaul acredita que a cultura drag, que tem em seu programa a maior vitrine de todos os tempos, deve se firmar cada vez mais como espécie de célula de resistência não só à discriminação contra homossexuais e transexuais, mas também à misoginia e à violência doméstica.
"Agora que a poeira baixou um pouco, e essa administração em Washington parece estar implodindo a cada dia que passa, desmoronando mesmo, estou mais otimista", afirma. "Isso tudo acendeu um fogo numa juventude que não sabia o quanto de luta existiu no passado para que algo como o 'Drag Race' pudesse passar na televisão."
Seu orgulho do reality que o devolveu aos holofotes depois de décadas ralando em boates do underground nova-iorquino, aliás, leva a constatações um tanto hiperbólicas.
"O programa criou toda uma estética, uma tribo, uma comunidade global muito conectada", diz RuPaul. "Mudou a estrutura molecular de como os jovens se enxergam. Eles podem ser mutantes, ter uma sexualidade fluida.
Essa é a grande mudança."
Mesmo que esse impacto do reality seja talvez mais evidente só para seu criador, é fato que "Drag Race" se tornou um fenômeno de audiência -a estreia da última temporada nos Estados Unidos teve 1 milhão de espectadores, recorde absoluto para o programa- e abriu espaço na cultura pop para expressões de gênero menos estanques, mais híbridas.
DESCONSTRUÇÃO
Essa desconstrução também surge nos looks das drags, que deixaram de buscar o aspecto de princesa para embaralhar arquétipos de feminilidade -já houve até queens de barba ou super-rechonchudas, distantes da magreza imposta pela indústria da moda.
RuPaul, que já ostentou belas e longuíssimas pernas depiladas, também vem adaptando o guarda-roupa para refletir uma feminilidade recatada, com vestidos mais longos, mas não menos exuberantes. Tem a ver, ele diz, com o fato de ele não ser mais uma garotinha do drag e sim a "grande dame" desse mundo.
Beirando os 60, RuPaul parece estar pronto para assumir o posto de matriarca do drag, mesmo não tendo perdido o contato com os anos -suados e dourados- da juventude.
Essa época em que tudo era mais difícil, a década de 1980 em Nova York, será pano de fundo de uma série sobre sua vida nos inferninhos de Manhattan, produzida pelo todo-poderoso J. J. Abrams, criador de "Lost" e diretor do último filme da série "Star Wars".
Será um retrato, RuPaul diz, do valor máximo que norteou sua vida até agora -o glamour. "Minha ideia de glamour é competência e beleza extrema, excessiva. A beleza, mesmo sintética, é importante para me manter centrado neste planeta. É minha base."
RUPAUL'S DRAG RACE
QUANDO aos sábados, às 23h
ONDE Comedy Central
Livraria da Folha
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