Mostra em Pequim busca diálogos entre artistas brasileiros e chineses

Crédito: Eduardo Ortega De Leve', obra do brasileiro Barrão
'De Leve', obra do brasileiro Barrão

SILAS MARTÍ
ENVIADO ESPECIAL A PEQUIM

Num táxi parado num dos míticos engarrafamentos que asfixiam Pequim, Sarina Tang esperava uma trégua das buzinas para falar da escala da mostra que acaba de abrir na capital chinesa, a primeira representação de peso de arte brasileira já realizada ali.

"Queria criar uma exposição que impressionasse os chineses", dizia a curadora. "Tinha de ser mega, porque tudo que fazem aqui é mega."

Não por acaso, o abre-alas é uma instalação de Tunga em que dedos gigantes de bronze e discos de cerâmica se equilibram sobre hastes metálicas de até sete metros de altura.

Essas torres rodeiam ainda uma árvore petrificada que exigiu a força de um batalhão de operários para ficar suspensa no meio de uma clareira formada pelas esculturas.

Na montagem que atravessou a madrugada do dia da abertura, eles encaravam perplexos a parafernália de símbolos que pontuam a obra, tentando enquadrar na realidade chinesa elementos que pareciam vir de outro mundo.

Toda a exposição que ocupa os três andares do Museu de Arte Minsheng de Pequim, uma antiga fábrica de eletrônicos transformada há dois anos em caixote metálico para exposições, tenta fazer uma operação semelhante, criando paralelos entre os trabalhos de brasileiros e chineses.

Mas isso é mais uma questão de pele. O contato escasso -ou a falta de um diálogo mais profundo- entre culturas tão distintas levou a aproximações superficiais entre as obras, como se importasse mais materiais e técnicas do que suas ideias e conceitos.

Há casos de semelhança estarrecedora, como as pinturas transbordando de tinta de Rodrigo Andrade e um painel criado do mesmo modo por Li Songsong, em que grossíssimas camadas de pigmento são amontoadas sobre a tela para construir figuras em relevo.

Outro caso flagrante é o das obras cinéticas de Abraham Palatnik comparadas aos trabalhos de Shang Yixin. Enquanto o brasileiro usa finas ripas de madeira colorida para dar a ilusão de movimento nas telas, o chinês usa o mesmo material em peças que parecem serpentear pela parede.

INVISÍVEL

Não faltam ecos visuais como esses nas galerias. Mas pouco do que está por trás dos trabalhos vem à tona, como se a dimensão política fosse relegada a um plano invisível.

Num país onde obras de arte precisam de aprovação da censura antes de qualquer exposição, essa questão se torna um fantasma que ronda as peças, vistas fora de contexto como se fossem meros exercícios formais sem ambições de protesto ou questionamento.

"É uma realidade dura", diz André Komatsu, que construiu um labirinto de painéis de metal e vidro numa das salas da mostra. "Aqui há outro tipo de controle, um controle mais brusco, mais antigo. No Brasil, a gente vive um totalitarismo contemporâneo."

Sua obra, ele conta, não teve problemas de censura e foi toda construída em Pequim. Na superfície, nada parece subversivo ou polêmico.

Mas Komatsu, como fez na Bienal de Veneza há dois anos, volta a sabotar o repertório do brutalismo paulista para questionar formas limitadas de ver uma realidade cada vez mais aterradora. "É um cárcere voluntário, vivemos numa estrutura corrupta e hierárquica."

Toda a secura asséptica do labirinto de Komatsu parece respingar nos sarrafos revestidos de seda da chinesa Hu Xiaoyuan, estruturas geométricas em que a madeira crua se dobra sob uma pele macia, algo entre carícia e agressão.

Nesse ponto, a mostra batizada "Troposphere" parece ganhar mais força. É no ataque à mesmice das praças e avenidas de metrópoles tanto no Brasil quanto na China que os artistas parecem caminhar sobre terreno comum.

"Na China, os urbanistas parecem programados pelos computadores. Tudo é padronizado", dizia Liu Wei, artista que construiu uma barricada camuflada para a mostra. "Arte é uma revolta contra a realidade e contra nós mesmos."

Sui Jianguo parece fazer um protesto semelhante ao criar tortuosas peças de cobre que lembram figuras de massinha em animações stop-motion.

"Engolir a cultura faz bem no Brasil, mas na China perdemos a tradição", diz Jianguo, lembrando a antropofagia do modernismo brasileiro. "Tenho saudades da época de prosperidade cultural de Pequim. Até nossos gramados agora estão padronizados."

Crédito: Divulgação Obra do brasileiro Tunga na mostra 'Troposphere', no Museu de Arte Minsheng de Pequim
Obra do brasileiro Tunga na mostra 'Troposphere', no Museu de Arte Minsheng de Pequim

ARTIFICIAL

Numa série de imagens em que os postes de luz dão uma aura fantasmagórica às palmeiras do aterro do Flamengo, no Rio, Caio Reisewitz também reflete sobre a ideia de uma natureza construída.

"É uma crítica ao sistema, ao descontrole", diz o artista. A fotografia também é a interpretação de uma realidade."

O lado violento dessa realidade aflora em outras obras.

Afonso Tostes ampliou em Pequim as esculturas em que dá forma de ossos a ferramentas usadas por escravos no Brasil. Na China, esculpiu também pás e vassouras usadas por camponeses do país.

E Lin Tianmiao revestiu de seda colorida os ossos de um esqueleto desmembrado, criando um arco-íris tétrico.

Mas dois trabalhos mais sutis retratam a selvageria como ela é no Brasil e na China.

Do lado de fora de uma sala escura, um monitor exibe um vídeo de Yang Zhenzhong em que um galo e uma galinha disputam grãos de arroz enquanto duas vozes, de um homem e de uma mulher, contam qual ave comeu mais.

É uma alusão a conflitos de gênero num país que abandonou só há dois anos a política de filho único que legou uma sociedade em que há mais homens que mulheres.

Dentro da sala, está "O Peixe", filme de Jonathas de Andrade em que pescadores acariciam suas presas. Os bichos se debatem até morrer na fricção de suas escamas contra a pele bronzeada de seus algozes, uma reflexão sobre até que ponto amor e violência são coisas irmanadas -talvez o mais forte dos pontos comuns entre culturas tão distantes.

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