Em coletânea de contos, Lydia Davis coloca trivial sob holofotes

Crédito: Danilo Verpa - 5.jul.2013/Folhapress Retrato da autora americana Lydia Davis durante a Flip 2013, em Paraty
Retrato da autora americana Lydia Davis durante a Flip 2013, em Paraty

CAMILA VON HOLDEFER
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

NEM VEM (muito bom) * * * *
AUTORA Lydia Davis
TRADUÇÃO Branca Vianna
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 54,90 (304 págs.)

Mais do que inconfundível, o estilo de Lydia Davis é, graças a uma combinação peculiar de obsessões e procedimentos, inimitável.

A americana é famosa pela habilidade com que manipula as narrativas curtas. Gêneros e linguagens são, nas mãos de Davis, rearranjados em textos cuja extensão varia de uma frase a poucas dezenas de páginas.

É o que se vê na coletânea "Nem Vem". O leitor entra em contato com um olhar próprio, mistura de humor e sobriedade. É a densidade elaborada a partir do ordinário.

Apesar de seguir a mesma linha, "Nem Vem" não é tão regular quanto o excelente "Tipos de Perturbação", publicado aqui em 2013. O importante é que os textos não tão bons –quando se considera o padrão de Davis– são compensados por aqueles em que a elaboração de forma e conteúdo típicos da autora conseguem atingir o nível dela esperado.

Ao trabalhar a banalidade, Davis garante um duplo efeito. Por um lado, o que é trivial parece mais trivial. Ao mesmo tempo, essa banalidade ganha verniz especial, como algo que, se investigado a fundo, com os meios adequados, é capaz de revelar um brilho antes inimaginável.

É assim que Davis manipula gestos, objetos e emoções que virariam pura mesquinharia se manuseados por outro autor.

Em certo sentido –o que pode ser dito de boa parte da literatura– toda crítica de um livro de Davis é uma crítica que falha ao tentar explicar os méritos dessa maneira particular de calibrar o ordinário (na temática) e o original (na abordagem e na forma). Descritos, seus contos dificilmente parecem interessantes. Mas são.

As narrativas são tecidas com uma espécie curiosa de leveza, ainda que as obsessões e manias dos personagens não os tornem, em absoluto, criaturas leves. Mesmo o que não é inofensivo parece ser, e é aí que reside boa parte do encanto de Davis.

Em um conto, por exemplo, uma mulher está em dúvida entre vender ou não um velho tapete. Parece bobo, mas Lydia Davis leva a hesitação e a troca de gentilezas com um vizinho –que manifesta interesse no tapete– ao limite do ridículo humano. E isso não é pouco.

Em outro, "Comendo Peixe Sozinha", a narradora conta carregar na bolsa uma "listinha plastificada" que elenca os peixes que pode comer, os que não pode e os que devem ser consumidos com moderação. Gasta vários parágrafos nessa descrição. Quando o prato chega, guarnecido por legumes, o ato de comer passa ao primeiro plano.

Um terceiro é uma breve carta a um fabricante de ervilhas congeladas, em que o remetente sugere modificar a coloração da embalagem para que as ervilhas pareçam mais saborosas.

Nem Vem - Ficções
Lydia Davis
Lydia Davis
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É a trivialidade posta sob as luzes de um holofote. A iluminação revela o que há de cômico mas também o que há de doentio e obsessivo.

Embora as narrativas longas sejam as melhores de ambos os livros, isso não se aplica a uma eventual aventura da autora no romance.

Davis escreveu apenas um, "O Fim da História", publicado no Brasil pela Record em 2016. Não é ruim, mas, perto dos contos, é pálido. O melhor de Davis ainda está nas formas breves.

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