Em novo livro, Marcelo Mirisola vai buscar a salvação no inferno

Crédito: Greg Salibian/Folhapress O escritor Marcelo Mirisola
O escritor Marcelo Mirisola

MARIA ESTHER MACIEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

COMO SE ME FUMASSE (muito bom) * * * *
AUTOR Marcelo Mirisola
EDITORA 34
QUANTO R$ 41 (176 págs.)

A certa altura de "Como se Me Fumasse", o narrador diz que escrever é "não fugir das palavras e vencer qualquer tipo de pudor", pois só assim torna-se possível "revirar o grotesco da existência pelo avesso".

É isso que esse mais recente romance do escritor paulista Marcelo Mirisola vem atestar de forma visceral e não desprovida de humor.

Trata-se de uma surpreendente ficção autobiográfica, na qual a memória se dá a ver também como alucinação.

Quem a exercita é um homem fracassado, não por acaso nomeado de Mirisola, que opta por descer aos infernos de sua própria existência para lidar com a recente morte dos pais.

Movido por esse impulso, entrega-se à obsessão por uma mulher que o faz de gato e sapato e a quem dá o nome de Ruína. Com ela vive uma "rotina de não encontros" e a idealiza na mesma proporção em que a difama, transformando-a numa espécie de salvação aniquiladora.

Isso em meio a bebedeiras, aventuras sexuais bizarras com outras mulheres, relatos de fracassos sucessivos, observações sobre literatura, referências culturais mundanas e muita, muita maledicência, ao que se soma ainda certa dose de metafísica.

Se, como afirmou o filósofo romeno Emil Cioran (1911-1995), é mais viável buscar a salvação no inferno do que no paraíso, Mirisola leva essa experiência aos limites, valendo-se de uma linguagem ímpar, que vai do escatológico ao lírico, num ritmo vertiginoso, em que predominam as repetições e variações de uma ideia fixa.

Ao mesmo tempo que realiza um luto atroz que beira o insuportável, o narrador-personagem revê momentos de sua perturbada vida pessoal e familiar, ridiculariza as convenções sociais e passa a limpo, com mordacidade, o seu percurso como escritor.

Não poupa ataques explícitos aos meios literários e culturais brasileiros, com referências explícitas (e por vezes desnecessárias) a nomes reais de pessoas que neles atuam.

Além disso, ironiza-se a si mesmo de maneira contundente, como que extraindo de sua própria vida os vícios que critica nos outros, sejam esses seus desafetos de estimação ou representantes da humanidade em geral.

Como Se Me Fumasse
Marcelo Mirisola
Como Se Me Fumasse
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Mirisola compõe, assim, um livro intenso e implacável, que talvez pudesse ser sintetizado como um Thomas Bernhard à la Nelson Rodrigues, com pitadas de Freud, Cioran e Nelson Gonçalves.

Nele, a consciência das perdas, do fracasso e da impossibilidade real de salvação revela-se o verdadeiro motor da sobrevivência. Afinal, como diria Cioran, "quem, ao ser salvo, ousa considerar-se vivo?".

MARIA ESTHER MACIEL professora de literatura comparada na UFMG, é autora, entre outros, de "Literatura e Animalidade" (Civilização Brasileira).

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