CD de canto proporciona experiência literária densa e impactante

SIDNEY MOLINA
CRÍTICO DA FOLHA

PUERTAS (muito bom)
ARTISTAS Adélia Issa (soprano) e Edelton Gloeden (violão)
QUANTO R$ 20
LANÇAMENTO Sesc

Tão comum na música popular, a formação canto-violão não tem atraído, no mundo clássico, a paixão obsessiva e meticulosa que caracteriza as experiências mais tradicionais da música de câmara.

Uma honrosa exceção foi, nos anos 1950-60, o duo formado pelo tenor Peter Pears (1910-86) e o violonista-alaudista Julian Bream, ainda hoje uma referência de unidade e refinamento.

Soprano de voz e técnica privilegiadas, a soprano Adélia Issa acaba de lançar com o violonista Edelton Gloeden (seu marido) o CD "Puertas". Embora atuante há muitos anos, este é o primeiro CD do duo.

"Puertas" proporciona uma intensa experiência literária em inglês, espanhol, alemão, italiano, yorubá e português.

Isso se deve à qualidade intrínseca dos textos musicados, tanto os do repertório já existente como os do escrito especialmente para eles.

Daí a importância –para uma apreciação plena– do encarte de 70 páginas que acompanha o álbum, o qual inclui todos os textos originais e traduzidos.

O cuidado de Adélia com a pronúncia de cada idioma é tão extremo quanto o seu trabalho vocal e, porque não dizer, teatral.

O CD abre com Shakespeare ("Songs of Ophelia", do britânico Stephen Goss) e fecha com Hilda Hilst ("Cantares de Hilda", do brasileiro Antonio Ribeiro).

Da loucura tocante de Ophelia cantando "e ele não voltará mais", ao apelo de Hilst para "que este amor só me faça descontente e farta de fadigas", há uma trajetória de grande impacto emotivo.

O violão de Gloeden nunca é coadjuvante. E isso não só por conta dos desafios propostos pelos compositores, mas igualmente pela sedução imediata de seu toque único, a prender a atenção da escuta como se nos levasse a um mundo paralelo.

É um camerista generoso e flexível, que escuta o todo e a ele se devota com disponibilidade máxima.

Além das obras de Goss e Ribeiro, outras três são inéditas em gravação, como a "Oriki de Erinlé", do baiano Paulo Costa Lima, sobre texto recolhido na Nigéria por Pierre Verger (1902-96).

Há também poemas de Gabriela Mistral (1889-1957) e Bocage (1765-1805) musicados por Eduardo Fernández e Jorge Antunes.

Igualmente originais são as obras do irlandês Denis Aplvor (1916-2004), "Seis Canciones de Federico Garcia Lorca", do alemão Heimo Erbse (1924-2005) e do italiano Mario Castelnuovo-Tedesco (1895-1968), esta sobre poema medieval de Guido Cavalcanti (1255-1300).

Predomina no CD uma sonoridade de estranhezas e asperezas, o que, aliás, reforça a força das imagens poéticas.

Na "Ballata Dall'Esilio", Cavalcanti canta as dores de quem não espera mais poder voltar à terra Toscana; florentino como ele, o compositor exprime, 700 anos depois, a angústia do exílio forçado pelo fascismo.

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