'Se Meu Apartamento Falasse' segue agudo na crítica do poder

Crédito: Divulgação SÃO PAULO, SP, BRASIL, 17-01-2018: Retrato do ex-jogador de futebol Ronaldo "Fenômeno". (Foto: Bruno Santos/ Folhapress) *** FSP-MÔNICA BERGAMO *** EXCLUSIVO FOLHA**
Jack Lemmon e Shirley MacLaine no filme "Se Meu Apartamento Falasse" (1960), de Billy Wilder

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

"Se Meu Apartamento Falasse" foi lançado em 1960 como uma comédia romântica dramática, um combinado de temas ousados com temperos leves. A ironia elegante, marca da assinatura de Billy Wilder, justifica os cinco Oscars conquistados pela produção, incluindo os de filme, direção e roteiro original.

Na trama sobre encontros e desencontros de executivos e suas amantes no apartamento de um modesto burocrata de uma empresa de seguros, Wilder e o corroteirista I.A.L. Diamond aproveitavam os ventos liberais da década nascente para retomar o tema do adultério, que o diretor havia explorado cinco anos antes em "O Pecado Mora ao Lado".

O olhar estrangeiro de Wilder, um dos muitos exilados europeus que emprestaram sofisticação ao classicismo hollywoodiano, exibia sem pudores as contradições de uma sociedade regida por puritanismo moral e movida por liberalismo econômico.

Se em "O Pecado Mora ao Lado" o adultério ainda era um parêntese na vida do homem casado, em "Se Meu Apartamento Falasse" a atividade sexual incessante não é apenas exceção.

Esse teor pode ter ficado datado, mas o filme preservou sua agudez ao registrar as relações de exploração no ambiente de trabalho muitas décadas antes de "Mad Men" parecer original.

A questão aparece desde o cenário oscarizado de Alexandre Trauner para o andar inferior onde ficam os funcionários anônimos, referência aberta a uma cena icônica de "A Turba", clássico de 1928 sobre a desumanização do homem moderno. Na narração introdutória feita por C.C. Baxter (Jack Lemmon) também só há lugar para estatísticas, na qual o indivíduo não passa de número.

Ceder a moradia aos chefes coloca Baxter na situação de sem-teto, que ele dissimula em infinitas horas extras no escritório, comparando-se à eficiência das calculadoras.

E o que dizer das mulheres? Depois de cumprir as funções de ascensoristas, secretárias e telefonistas, no fim do expediente elas passam ao posto de amantes, numa visão cruel da condição feminina.

Difícil é rir dessa comédia sem sentir seu gosto amargo.

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