Na sua origem, nosso 'obrigado' reflete o antiagradecimento

NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Obrigado" é o agradecimento básico da língua portuguesa e do povo brasileiro. Etimologicamente, entretanto, "obrigado" é o antiagradecimento. A palavra "agradecer" contém a raiz "gratus", do latim, que significa ser acolhido ou acolher com favor, de forma agradável –termo que, aliás, tem a mesma origem de agradecer.

A evolução dessa raiz gerou significados aparentemente diferentes, mas, se pensarmos bem, muito assemelhados entre si: graça é bênção (recebi uma graça); agradecimento (graças aos céus); delicadeza (uma pessoa é graciosa); humor (alguém é engraçado) e franqueamento (algo é de graça, gratuito).

Em todas essas derivações vibra a ideia de favor sem retribuição. Fazer algo gratuitamente (não necessariamente em termos monetários) é fazê-lo de forma desinteressada, sem esperar algo em troca, pelo prazer de fazê-lo e de agradar àquele a quem se presta o favor.

Agradar: prestar graça de graça. Receber e pedir graças é dar e acolher sem que nada seja exigido em troca.

Quando rimos de uma cena engraçada, é porque ela nos agrada e porque o riso é franco e espontâneo. Apanhar um objeto no ar, de maneira simultaneamente leve e firme, tem a graça de um gesto que vale por si mesmo, sem aspirar a uma finalidade.

Na realidade, a graça é isso: subversão do utilitarismo generalizado. Não fazer as coisas em nome de um objetivo, uma meta (as famosas metas dos negócios), mas em nome da própria coisa.

EQUAÇÃO

Nesses momentos, os fins e os meios coincidem e, instantaneamente, que seja, saímos da equação linear e lógica de meios e fins e isso é praticamente a definição de prazer. Graça: agrado, deleite. Deleite: delícia.

Acontece que, por razões históricas diversas, agradecemos dizendo o contrário disso tudo: obrigado.

Quem diz "obrigado" está dizendo que o favor recebido foi colocado em estado de contrato: tenho a obrigação de retribuir. O favor se transforma em comércio e quem favorece pode, assim, cobrar.

Tudo isso é exatamente o oposto do que se expressa na palavra "gracias" ("obrigado" em espanhol) e até na resposta "de nada", que, dado o "obrigado", fica um pouco deslocada.

Se quase tudo –desde as relações cotidianas, íntimas e privadas, até a Justiça e a política– está sendo transformando em negociatas, em jogo e é cada vez mais passível de contratos (até regras de namoro são fixadas por escrito), está na hora de pensarmos no conteúdo e na forma dos nossos agradecimentos e treinar, que seja uma vez por dia (como naqueles calendários orientais de autoajuda) fazer algo de graça e por graça. E acreditar: almoço grátis existe, sim.

NOEMI JAFFE é crítica literária e autora de "Não Está Mais Aqui Quem Falou" (Companhia das Letras)

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