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'O Ofício' tematiza o percurso do autor em busca de ser, de fato, um autor

Escritor não tropeça nos exageros típicos da autobiografia literária

O escritor Serguei Dovlátov - Reprodução
ISMAR TIRELLI NETO

O Ofício

  • Preço R$ 39 (232 págs.)
  • Autor Serguei Dovlátov
  • Editora Kalinka
  • Tradução Daniela Mountian e Yulia Mikaelyan

Em 1990, o escritor Serguei Dovlátov morre, em Nova York. Tinha 50 anos incompletos. A União Soviética da qual emigrara sob pressão do KGB em fins dos anos 1970 vivia seus momentos finais.

Em sua América de "adoção", no entanto, contava já com um público fiel, forjado sobretudo entre os leitores da prestigiosa revista The New Yorker, na qual a leviandade selvagem de sua prosa encontrou espaço para vicejar.

Antes de Dovlátov, somente um outro autor russo havia publicado ficção lá: Nabokov.

À altura de sua morte, Dovlátov vinha publicando novelas havia pouco mais de uma década, à razão de uma por ano. Sua prosa, marcadamente autobiográfica, prima por períodos curtos e pela aversão aos juízos altissonantes.

O poeta e amigo de juventude Joseph Brodsky, em aspas estampadas na quarta capa deste "O Ofício", afirma: "É difícil escapar de seu tom despojado".

Realmente, a prosa de Dovlátov —vertida aqui ao português por Daniela Mountian e Yulia Mikaelyan—, não se lê, se compulsa.

As duas novelas que compõem "O Ofício" tematizam, em essência, o percurso do autor em busca de ser, de fato, um autor.

A primeira enfoca sua atuação intelectual no domínio soviético, e os obstáculos que o regime impunha à circulação de textos que fossem de encontro às suas diretrizes morais; a segunda, os primeiros anos no "Ocidente decadente".

Nenhuma das novelas tropeça nos exageros típicos da autobiografia literária. Dovlátov se defende da própria vocação com espirituoso distanciamento de si. O fato de que o livro é salpicado de causos —os "Solos na Underwood"— protagonizados em sua maioria por amigos e colegas de profissão parece concorrer para esta impressão. O que se desenha é um autorretrato feito de traços alheios; um híbrido entre depoimento pessoal e documento geracional.

Ao contrário de tantos autores fascinados pelas circunstâncias de sua própria formação, Dovlátov não se mostra nem grave, nem sentimental. Não faz caso da literatura como missão. Mas faz caso. Sem nunca perder de vista a dimensão de trabalho térreo da escrita, mostra-se incansável em suas tentativas de publicação, ama o que faz com um amor perspicaz e constante.

Em "A Mente Cativa", o poeta polonês Czeslaw Milosz discorre sobre o realismo socialista nos seguintes termos: "No campo da literatura, proíbe o que em qualquer época foi a tarefa fundamental do escritor —observar o mundo sob um ponto de vista independente, dizer a verdade como ele a vê e, assim, manter vigilância assídua sobre o interesse da sociedade como um todo".

Ainda que "O Ofício" trate, de algum modo, da pan-burocracia soviética, não é em Kafka que encontraremos os antecedentes de Dovlátov, mas nos contos mais leves de Tchékhov. O próprio autor reivindica textualmente o parentesco, e não é difícil enxergar as afinidades. Ambos escrevem de forma atemporal e operam pequenos milagres de personificação, tornando personagens e cenas visíveis e palpáveis mediante a apresentação de poucos e decisivos traços.

Ismar Tirelli Neto
Poeta, é autor de 'Os Ilhados' e 'Ramerrão' (7Letras)

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